Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 

 

 

Livro: Teoria Miogênica do Enfarte Miocárdico - Parte 1; Mesquita, QH de

 

ÍNDICE

 

Introdução e Fundamentos da Teoria Miogênica

 

Na evolução da cardiologia, no domínio da coronariopatia, há um intervalo muito longo desde a clássica descrição da angina de peito de Heberden (1768) (1), relacionando-a com o processo obstrutivo coronário, até o trabalho clássico de Herrick (1912) sobre o enfarte agudo do miocárdio, apresentado como conseqüência de trombose coronária. (2)

 

Durante este largo intervalo, a angina do peito granjeou grande popularidade universal, era reconhecida como causa freqüente de morte súbita e seus aspectos sintomáticos foram exaustivamente pesquisados; o primeiro ensaio terapêutico de efeitos benéficos foi creditado a Digital por Withering - 1785.(1)

 

Certos achados anatomopatológicos indicavam alterações miocárdicas ventriculares que, posteriormente, foram rotuladas como enfarte miocárdico, mas que, como no exemplo de Hodgson (1815), falecido com angina do peito, apresentava artéria coronária com acentuada calcificação e miocárdio com região de amolecimento correspondente à distribuição daquela coronária, a tal ponto que o dedo do observador poderia penetrar facilmente na região afetada. Indubitavelmente, Hodgson tinha registrado enfarte agudo do miocárdio, sem naturalmente conhecer o verdadeiro sentido dos seus achados e com toda certeza, observava também o primeiro caso de enfarte miocárdico sem trombose coronária primária. (3)

 

Mais tarde, Brunton (1867) iniciava o emprego do Nitrito de amilo e, anos depois, Murrell (1879) começava a empregar a Trinitina sublingual, ambos consagrados no alivio imediato das crises de angina do peito. (3)

 

Hammer (1878) publicou o primeiro caso de trombose coronária com diagnóstico antemortem. (3)

 

Weigert (1880) apresentou a primeira descrição anatomopatológica do enfarte relacionado com lesões coronárias. (3)

 

Coube a Dock (1896) a primazia pelo primeiro diagnóstico clínico de enfarte miocárdico nos EEUU, confirmado por necropsia. (3)

 

Obrastzow e Straschesko (1910) fizeram a primeira descrição clínica pormenorizada do enfarte agudo do miocárdio. (3)

 

Entretanto, o trabalho clássico de Herrick (1912) retém a primazia porque, além dos aspectos clínicos, correlacionou o enfarte como conseqüência de trombose coronária. Recomendava ao mesmo tempo o emprego do cardiotônico - digital ou estrofanto - como agente terapêutico superior aos dilatadores coronários existentes. (4)

 

O eletrocardiograma introduzido por Einthoven (1903) era praticamente utilizado só para o estudo das arritmias, mostrando-se insuperável; depois, foi-se aplicando ao estudo das hipertrofias ventriculares e bloqueios de ramo.

 

Somente em 1920, Smith e Pardee procuraram identificar o enfarte miocárdico através das alterações do segmento RS-T e onda T nas Derivações dos Membros ou de Einthoven. (5, 6)

 

Coube a Escola de Frank Norman Wilson, a partir de 1929, a reformulação de toda eletrocardiografia com a conquista de novos territórios e o alargamento das fronteiras. É a passada de gigante dentro da eletrocardiografia e o enfarte miocárdico começava a ser identificado com o suporte experimental. (7)

 

Entre nós, filiado àquela Escola, meu Mestre e Amigo Dante Pazzanese, indubitavelmente, foi o primeiro a ensinar e divulgar as diferenças entre angina do peito e enfarte miocárdico e neste particular como se deveria fazer o diagnóstico eletrocardiográfico.

 

Iniciava-se então a fase de discernimento entre angina do peito e enfarte miocárdico e ganhava muita relevância a Teoria Trombogênica preconizada por Herrick. A angina do peito passava a ser admitida como processo isquêmico relacionado com esforço, situando-se como fenômeno dotado de causa e efeito; enquanto o enfarte agudo do miocárdio se apresentava como condição de mais grave conseqüência e exigia a ocorrência de trombose coronária primária. (4)

 

Ao cabo de algum tempo, a síndrome intermediária firmava-se sucedendo a designação do processo de insuficiência coronária aguda.

 

Nos últimos anos, a evolução dos conceitos para os processos de estabilidade e instabilidade sintomáticas, caracterizam a evolução da angina do peito mas permanecem dissociados do enfarte agudo, tido necessariamente como de origem trombogênica.

 

Nestes termos, a Teoria Trombogênica do enfarte tem atuado como obstáculo a fiel compreensão da evolução do mecanismo fisiopatológico, dentro do espírito da Teoria Miogênica do enfarte, que admite uma seqüência evolutiva mais consentânea com a caracterização clínica.

 

Em 1972, elaboramos um novo mecanismo fisiopatológico para o enfarte miocárdico e conseqüentemente um novo tratamento para o enfarte (Quadro 1) (8-10) .

 

 

ATEROSCLEROSE CORONÁRIA

FLUXO CORONÁRIO LENTO

ANGINA ESTÁVEL – CORONARIOPATIA SILENCIOSA

1-       ISQUEMIA MIOCÁRDICA RELATIVA

2-       PERDA CONTRÁTIL RECÍPROCA

 

FATORES FÍSICOS E PSICO-EMOCIONAIS ESTRESSANTES 

                                 

 

 

FATORES FARMACOLÓGICOS –

AGENTES INOTRÓPICOS NEGATIVOS

   

 

DOENÇA MIOCARDICA SEGMENTAR

 

 

ANGINA PECTORIS INSTÁVEL – SÍNDROME INTERMEDIÁRIA

QUADRO CLÍNICO ENFARTANTE

1-       INSUFICIÊNCIA MIOCÁRDICA REGIONAL

2-       ISQUEMIA MIOCÁRDICA RECÍPROCA

 

NECROSE MIOCÁRDICA PRIMÁRIA

(ENFARTE)

ESTÁSE CORONÁRIA OU FRAGMENTAÇÃO

E DESLOCAMENTO DA PLACA ATEROMATOSA POR EDEMA

 

TROMBOSE CORONÁRIA SECUNDÁRIA

(NÃO OBRIGATÓRIA)

 

 

Diagrama da Teoria Miogênica

 

Naquela altura as nossas observações clínicas punham em dúvida a concepção ortodoxa da fisiopatologia do enfarte, que preconiza a trombose coronária como causa do enfarte, porque considerávamos muito difícil sua sustentação frente as seguintes condições clínicas:

 

a) insucesso absoluto do anticoagulante no tratamento da síndrome intermediária, tida como processo trombótico evolutivo, quando seria esperado êxito total; por isso foi por nós abandonado em 1954. (11)

 

b) registro de enfarte miocárdico relacionado com estado psico-emocional estressante ou iniciado durante a execução de atividade física estressante ou inusitada.

 

c) freqüentes registros arteriográficos coronários e de pontes de safena, sem processos obstrutivos totais, na presença de enfarte miocárdico. (12-15, 16)

 

d) ocorrência de enfarte miocárdico, registrado no período de 2 - 21 dias, após a abrupta supressão do bloqueador beta adrenérgico, empregado em dosagem relativamente elevada, em portadores de angina do peito. (17-28)

 

Enfatizando ainda mais tais considerações clínicas que se antepõem ao processo trombogênico primário, devemos destacar a raridade do enfarte miocárdico em portadores de insuficiência cardíaca crônica, sob uso continuo do cardiotônico.

 

Além do mais, integrados na conjuntura da evolução natural da coronariopatia aterosclerótica crônica, fomos tomando consciência clinica das circunstâncias e fatores desencadeantes, análogos, na asma cardíaca e edema agudo do pulmão de um lado, e na síndrome intermediária e enfarte agudo do outro; dependentes de idêntico mecanismo miogênico de deterioração progressiva até o desencadeamento da falência global do ventrículo esquerdo nas duas primeiras condições, enquanto nas últimas, a falência miocárdica é regional e agravada pelo confronto com os demais segmentos miocárdicos íntegros.

 

Todas essas situações clínicas não se ajustam ao conceito da trombose coronária como causa do enfarte, por conseguinte, passamos a admitir o seguinte modelo fisiopatológico para o enfarte miocárdico e acreditamos que a trombose coronária primária, ocorreria acidentalmente por destruição ou deslocamento de placas ateromatosas

 

A aterosclerose coronária e fluxo coronário lento em coronárias extramurais normais, desenvolvem processo isquêmico miocárdico através do desequilíbrio entre a demanda e o suprimento sangüíneo aos segmentos miocárdicos, dependentes das artérias coronárias direita e esquerda. Basicamente, as grandes artérias coronárias extramurais são responsáveis pela nutrição miocárdica segmentar e principalmente pelo equilíbrio contrátil de cada segmento da parede ventricular.

 

Toda vez que é desenvolvida a insuficiência coronária relativa através de esforço físico ou estresse psico-emocional resulta perda de contratilidade imediata da área isquêmica e simultânea exaltação contrátil dos demais segmentos ventriculares não afetados. 81

 

A continuidade repetitiva de tais manifestações isquêmicas tendem a contribuir para a instalação de segmentos assinérgicos, pela isquemia + perda de contratilidade e sobrecarga imposta pelos demais segmentos ventriculares íntegros. durante a fase de ejeção ventricular.

 

Dessa maneira, a coronariopatia contribui para a deterioração do segmento ventricular, constituindo as áreas de miocardiosclerose ou doença miocárdica segmentar, possível sede futura do enfarte miocárdico

 

De acordo com a lesão isolada de 1 artéria coronária ou de lesões combinadas de 2 ou 3 artérias coronárias, os ventriculogramas mostram as tendências ou predominâncias de repercussões sobre a parede ventricular.

 

A evolução de lesão de 1 artéria coronária quase sempre tem o seu destino marcado por enfarte e quando se trata da artéria descendente anterior esquerda, além da predominante evolução precoce para o enfarte geralmente é sede de assinergia anteroapical habitual e facilmente evolutiva para aneurisma ventricular.

 

Nos processos combinados de 2 ou 3 coronárias lesadas, ocorrência comum em processo aterosclerótico simultâneo das artérias coronárias, a evolução da degradação miocárdica pode resultar em enfarte do segmento ventricular mais comprometido ou terminar em insuficiência cardíaca.

 

A repercussão ventricular de lesão de 1 artéria coronária é responsável pela assinergia da parede correspondente e o ventriculograma assume o aspecto de desarmonia patológica. enquanto que nas lesões simultâneas de 2 ou 3 artérias coronárias, o ventriculograma guarda o aspecto da harmonia patológica, decorrente dos processos assinérgicos combinados.

 

As síndromes clinicas, identificadas através da fenomenologia sintomática, caracterizam-se fundamentalmente pelos critérios de angina do peito estável e de coronariopatia silenciosa, susceptíveis de serem reconhecidas frente às sobrecargas físicas e psico-emocionais ou então como angina do peito instável, bem representada pela síndrome intermediária e mais adiante, como enfarte agudo do miocárdio que corresponde ao clímax da instabilidade.

 

O processo de angina do peito estável reveste-se de uma relação de causa e efeito para a produção da isquemia que traduz o episódio de insuficiência coronária relativa e desenvolve reciprocamente insuficiência miocárdica regional. Cessada a causa, desaparecem os efeitos por reversibilidade contrátil, decorrente da boa reserva miocárdica.

 

No processo de angina do peito instável, verifica-se a ausência de relação de causa e efeito para o desencadeamento do processo sintomático, porque nessa condição a miocardiopatia segmentar já avançada, sofre inesperada e abrupta falência contrátil regional primária, provocando conseqüentemente o episódio isquêmico secundário, no qual o fenômeno de reversibilidade contrátil é lento e a contratilidade retorna ao normal em espaço de tempo maior que no processo estável.

 

Essa progressiva degradação miocárdica funcional quase sempre termina no quadro clínico enfartante, traduzindo a insuficiência miocárdica regional declarada, incapaz de espontaneamente reverter à contratilidade normal, dando lugar ao relaxamento da estrutura miocárdica regional, com estagnação circulatória e abaulamento da parede ventricular nesse sítio: sede também de metabolismo anaeróbico, de depósito de lactato e catabólitos e de depleção de fosfatos energéticos, seguidos por transformações estruturais evolutivas para a necrose miocárdica primária, de estrutura variada.

 

Ao mesmo tempo em que ocorre o enfartamento dos tecidos envolvidos - miocárdio, artérias, veias, capilares e linfáticos - estabelece-se a estase coronária que pode conduzir a trombose coronária secundária. Entretanto, esta também poderá ocorrer em conseqüência do edema e infiltração celular do miocárdio e endotélio com o possível deslocamento ou fragmentação de placas ateromatosas, inelásticas, propiciando a produção de trombose coronária secundária, vinculada a parede arterial e representando a posteriori um simulacro de trombose coronária primária.

 

Como se vê, trata-se de mecanismo unitário para todas fases evolutivas da coronariopatia, destacando-se primordialmente a importância do estado contrátil miocárdico. enfocando a história natural dentro do determinismo habitual de qualquer processo de miocardiopatia segmentar ou generalizada, e assim, de acordo com a extensão desta, desencadear o enfarte miocárdico, resultante de insuficiência miocárdica regional, ou então, a insuficiência cardíaca por comprometimento global do ventrículo esquerdo.

 

Esboçado esse mecanismo fisiopatológico, cabia-nos comprovar e ainda mais, conseguir subsídios anatomopatológicos que escudassem nossos propósitos.

 

Através do trabalho de Roberts, tomamos conhecimento da existência de um grupo dissidente, preconizando a trombose coronária como conseqüência do enfarte. (34)

 

Desde então estruturamos a base anatomopatológica dos nossos conceitos. reforçada por novos subsídios que apresentamos a seguir:

 

a) obstrução coronária completa, de natureza aterosclerótica representando cerca de 75% dos casos e trombose coronária recente em apenas 25% dos casos autopsiados. (29) 

 

b) crescente incidência de trombose coronária com a crescente duração de sobrevida no pós-enfarte miocárdico: menos de 1 hora com 16% de trombose, entre 1 e 24 horas com 37% e com mais de 24 horas com 53% de trombose coronária. (30)

 

c) trombose coronária incorporando fibrinogênio marcado pelo I 125 administrado 10-15 horas após o inicio das manifestações clínicas de enfarte, fato esse que sugere a trombose coronária como conseqüência da necrose miocárdica primária. A exclusão de I 125 do trombo desenvolvido em um caso, quando administrado, 47 horas após o início do processo, ocorreu provavelmente porque nesse período a trombose já se formara e então a administração tardia da substância radioativa serviu para demonstrar o significativo valor da administração precoce e durante a formação do trombo. A administração do I 131 confirmou os achados anteriores. (31, 32)

 

d) a trombose coronária pós-enfarte foi demonstrada também experimentalmente. (33)

 

e) grande variação na incidência da trombose coronária em registros de necropsia. (29-53)

 

f) embora os anatomopatologistas dissidentes identifiquem a grosso modo a necrose miocárdica como aparentemente primária e a trombose coronária como secundária, permanece o assunto controvertido e com o impasse gerado pela impossibilidade atual, em saber-se qual a idade verdadeira do trombo coronário e da necrose miocárdica, concomitantes. (52)

 

Esboçado novo mecanismo fisiopatológico para o enfarte miocárdico, necessariamente descortina-se como conseqüência um novo conceito terapêutico que, na prática, irá nos servir como meio de comprovação da Teoria Miogênica. Se o estágio crítico desse novo mecanismo é a insuficiência miocárdica regional, precursora da necrose miocárdica primária, o objetivo terapêutico é naturalmente o cardiotônico que deve ser administrado o mais precocemente possível, a fim de corrigir a falência miocárdica regional em curso, ainda sem processo necrótico definido. Nestas condições, o cardiotônico é tido como protetor miocárdico, porque salvará as fibras miocárdicas falentes, isquêmicas, mas viáveis, da necrose certa que ocorre nos processos deixados à própria sorte.

 

Ultrapassada esta fase aguda, o cardiotônico será empregado como tratamento de manutenção que se confunde com a profilaxia do enfarte miocárdico, quando se procura preservar o miocárdio isquêmico, do ponto de vista funcional, procurando-se impedir a insuficiência miocárdica regional, completando-se assim os efeitos corretivos coronário-miocárdicos da circulação colateral.

 

A parte de comprovação terapêutica será discutida nas condições clínicas, que constituem a história natural da coronariopatia crônica, sob mecanismo unitário, desde a coronariopatia silenciosa até o enfarte miocárdico, caracterizando os estágios de estabilidade e instabilidade sintomáticas, responsáveis pelas síndromes clínicas geradas como dependentes da condição contrátil miocárdica.

 

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