Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio
A Falta de Identidade da Cardiologia Nacional
O Doutor Quintiliano H. de Mesquita, médico cardiologista e diretor do Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio (1999-2000), comenta em seu livro "Como escapar da ponte de safena e do enfarte do miocárdio só com remédio", de 1991:
"A cardiologia brasileira não tem conseguido ainda a sua identidade nacional e tem falhado muito em sua identificação com a tradição dos estudiosos do passado, voltados para a cardiologia ainda embrionária como parte da Clínica Médica, porque em vez de importar o melhor, criticar, expurgar e aproveitar na prática o seguro, sem risco, inócuo e consagrado pelo uso, foi se caracterizando como campo de experimentação clínica e até palco de gafes ridículas como assinalamos, no momento propício, através de nosso trabalho protesto: "Notas práticas sobre o emprego da digitalina":
Após a Segunda Guerra Mundial, com a transferência da influência européia, principalmente francesa, para a norte-americana e coincidindo com o nascimento da Cardiologia entre nós, como prolongamento da Cardiologia norte-americana, dominada pela nova e brilhante Eletrocardiografia experimental e clínica da Escola de Frank Norman Wilson, vimos o ingresso de nova tecnologia diagnóstica com aparelhagem audiovisual, avançada e educativa, acabando com a auscultação dos privilegiados ouvidos, através de treinamento objetivo e gráfico na captação dos sons e ruídos estetacústicos do coração. Foi assim marcada a época com o término dos ouvidos especiais e o inicio da constatação seqüencial e contínua dos registros no momento da audição dos fenômenos no homem, resultando em condicionamento audiovisual reflexo assim memorizado.
No tocante ao emprego da Digital ocorreu entre nós uma inversão insólita e absoluta na conduta dos mentores da Clínica Médica, professores e cardiologistas de então que, ignorando a transição dos norte-americanos que deixavam o emprego do obsoleto pó de folhas da Digital, logo após o registro ou entrada da Digitaline Nativelle nos EUA, anunciada pelo JAMA em 1942, quando passaram a utilizar o método de administração correta de Eggleston (doses de ataque e manutenção contínua) aplicado ao emprego da Digitaline, produto purificado, alijando assim o emprego do arcaico pó de folhas da Digital. Como os compêndios de terapêutica e cardiologia que nos chegavam na época ainda tratavam do uso do pó de folhas da Digital, assistimos preconizar-se entre nós o emprego do pó de folhas, até com lançamentos de produtos tais nacionais e o aproveitamento de estoque dos laboratórios norte-americanos.
Enquanto assim se procedia por aqui, as revistas médicas norte-americanas de Cardiologia mostravam a corrida aos produtos purificados (Digitaline, Digoxina, Lanatosideo-C) que chegavam lá procedentes da Europa. Por aqui, abandonávamos o uso tradicional e voltávamos para o obsoleto como novo. Por causa disso protestamos através do referido trabalho. Mas, tudo por aqui foi corrigido quando as novas edições norte-americanas de livros sobre Cardiologia chegaram em nosso meio trazendo como novo muito do que utilizávamos no passado.
Era o sinal evidente do início de nossa subserviência e cômoda dependência cultural, adotando-se o que vinha de lá com a aceitação pura e simples e sem discussão. Em certo período, para muitos, o veículo de americanização da Cardiologia brasileira era o México e vimos a mexicanização da nossa Eletrocardiografia.
Ocorria a tradução e repetição dos trabalhos da Escola de Wilson, e, curiosamente, uma transferência mexicanizada dos mesmos, sofrendo uma maquilagem carimbada "Made in México". Isso acontecia naturalmente porque os mexicanos procuravam a identidade nacional para a sua Cardiologia. Aconteceu até com trabalho nosso publicado em 1948 (Contribuição para o estudo dos bloqueios de ramos. Nova Classificação), cujo padrão de bloqueio de ramo incompleto tipo 1a (complexo QRS com duração normal mas com padrão morfológico precordial de bloqueio de ramo), Sodi-Pallares adotou-o pura e simplesmente em sua monografia de 1949, sem necessariamente comentar a sua mudança quanto ao seu critério anterior em trabalho com a co-autoria de Friedland (1947), sem se referir sequer ao nosso enfoque original e prioritário, limitando-se apenas a incluir a referencia ao nosso trabalho em sua bibliografia.
A Cardiologia brasileira tem sua identificação com a norte-americana, sem identidade nacional nem memória possível, porque o que nasce por aqui fica sufocado pela indiferença e pelo complexo de inferioridade dominante, adotando-se só o que vem de fora.
Por ocasião de visita nossa aos EUA pudemos constatar in loco e confirmar que os cardiologistas não utilizavam clinicamente a Estrofantina, o excelente cardiotônico que tradicionalmente utilizávamos procedente da Europa e, lá como cá, consagrado pelos resultados e segurança. Interessante notar-se que, no Brasil, um prestigioso laboratório farmacêutico norte-americano por mera necessidade de participar do mercado brasileiro, lançara o Cardiovitol, aproveitando o marketing do Kombetin (Alemanha), Ouabaine (França), Strophoside (Suíça) e Strofopan (Itália). A partir da década de 70 foi abolido o seu emprego entre nós, simplesmente porque só administramos o que os norte-americanos preconizam e usam. Portanto, por uma questão de fidelidade do cardiologista brasileiro e pela falta de identificação com a nossa tradição e competência passada, somos como que uma estação de repetição de imagem e rastreamento fiel dos lançamentos e manobras cardiológicas praticadas na grande nação do norte.
Aqui repetimos todos os trabalhos publicados lá e chegamos aos mesmos resultados com boa aplicação, dando-nos por satisfeitos por seguir, reproduzir e copiar, já como tradição, sem discutir nem rejeitar com independência porque é mais cômodo e porque não somos japoneses que inovam ou aperfeiçoam. Continuaremos a reboque e dando brilho no que os mais avançados fazem ou criam na Cardiologia”.
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