Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio
A Quebra dos Princípios da Prática Médica na Cardiologia
O Doutor Quintiliano H. de Mesquita, no capítulo Princípios da Prática Médica de seu livro “Como escapar da ponte de safena e do enfarte do miocárdio só com remédio” escrito em 1991, coloca:
“A Medicina destina-se à preservação da saúde e garantia de vida confortável e produtiva. Repousa em três princípios básicos: profilaxia da doença, terapêutica clínica da doença e terapêutica cirúrgica para a radical eliminação da doença que não pôde ser prevenida nem curada clinicamente”.
“Todos os campos da Medicina, representados pelas numerosas especialidades existentes, têm se caracterizado pelos padrões de sua identidade nacional e do seu constante progresso. Quando a profilaxia se avantaja a doença se torna menos freqüente ou ausente; quando a terapêutica clínica é soberana, a cirurgia desaparece ou só entra em campo para o que escapou do controle clínico; quando a cirurgia prevalece, algo de anormal ocorre, seja porque falhou a profilaxia ou a terapêutica clínica é impotente, então a eliminação ou correção cirúrgica do estado patológico é realmente salvadora, desde que seja radical na solução, nunca competitiva com a clínica, nem paliativa, porque assim falta a finalidade precípua e passa a representar insucesso ou interferência indébita”.
Na cardiologia, como não poderia deixar de ser, a prática médica deveria obedecer à mesma tramitação, com o destacado papel da profilaxia, da clínica e da cirurgia.
Nas cinco últimas décadas temos participado de sua evolução e temos registrado nas duas últimas uma tendência à transformação da especialidade eminentemente clínica, em especialidade cirúrgica em todas as áreas, avaliando-se sempre e presuntivamente todos os casos do ponto de vista cirúrgico para o tratamento possível. À clínica são relegados apenas os casos avançados ou não elegíveis para a cirurgia que, fugindo ao seu papel de correção radical, tem se caracterizado como competitiva com a clínica, porque não resolve em um só ato, é repetitiva e portanto paliativa. Dá-nos hoje a forte impressão de que tem propiciado uma vida mais curta, mais sofrida e traumática que a clínica nos processos orovalvulares e na coronariopatia e, pior de tudo, com manifesta aparência e falsa verdade de que se constitui como de melhor e maior progresso alcançado.
Temos participado da evolução cardiológica, assistindo ao nascimento dos métodos diagnósticos e da terapêutica cirúrgica. Embora tenhamos presenciado a quebra de muitos tabus e a magnífica evolução da cardiologia do nosso tempo com entusiasmo, sempre nos postamos como críticos às abordagens cirúrgicas e sempre nos recusamos a aceitar para nossos pacientes os métodos cirúrgicos que nos pareceram não resolver de maneira radical e constituírem-se apenas como o primeiro tempo de cirurgias a se repetirem por duas, três ou mais vezes como as praticadas muito precocemente nas valvopatias, bem como na coronariopatia crônica.
Continuamos a admirar os avanços cirúrgicos e a resolução dos casos em primeira instância, como os que exigem a reparação das paredes septais interatrial e interventricular e dos aneurismas parietais ventriculares. Neste particular, para que não se pense que somos contra a cirurgia cardíaca, tivemos em 1954, oportunidade de despertar o interesse de Charles P. Bailey pela aneurismectomia ventricular pós-enfarte e de confiar-lhe o nosso quinto caso já em fase terminal de insuficiência cardíaca irredutível; constituindo-se no primeiro caso da literatura de verdadeiro aneurisma ventricular esquerdo operado com absoluto sucesso. Assim foi iniciada nova técnica cirúrgica radical e salvadora e hoje em dia os aneurismas ventriculares, falsos e verdadeiros e simples regiões assinérgicas são submetidos à plástica ventricular.
Já na década de 40, participamos como consultor em eletrocardiografia dos trabalhos experimentais do Prof. Eurico da Silva Bastos com a técnica de revascularização miocárdica de O' Shaughnessy pela fixação do epíploo no coração do cão. Dos magníficos resultados de anastomoses diretas ao miocárdio, tornado isquêmico por ligadura ulterior de ramo coronário no cão, tivemos oportunidade de transportar o método para o coração humano em dois casos de estado anginoso permanente e instável, com grande sucesso e suspensão de toda medicação. Naquela época, não procuramos estender tal cirurgia a todos os casos de coronariopatia crônica porque só a admitíamos em casos como os nossos operados, porque acreditávamos desde aquela época na capacidade e benefícios da colateralização da circulação coronária na preservação do miocárdio isquêmico e prevenção do enfarte do miocárdio, insuficiência cardíaca e morte súbita. Somente quando a instabilidade sintomática predominasse e por absoluta falta de recursos terapêuticos preventivos do iminente enfarte agudo do miocárdio, pensaríamos em apelar para a cardiomentopexia. Todavia, de 1972 para cá, esses casos de instabilidade sintomática bem caracterizados como angina instável, têm sido facilmente dominados pela nova terapêutica preconizada por nós e por isso não acreditamos mais na necessidade de qualquer processo revascularizante miocárdico.
Nas três primeiras décadas recusamo-nos a aceitar as demais cirurgias cardíacas propostas para revascularização miocárdica, por se apresentarem inexpressivas quando não ridículas tentativas com o significado aparente de fazer-se para ver em que dava, ao ser aplicada no homem indefeso e desprotegido, sem a necessária precedência do ato experimental no animal.
Assim, atuávamos por dever e respeito ao ofício daquele que lida com o material humano e vida nobre - paciente carente e confiante - que se entrega ao cardiologista de corpo e alma, em confiança e em troca do melhor para sua saúde e sobrevivência.
Como conseqüência, rejeitamos a colocação de pó de asbesto no saco pericárdico, a anastomose aorta-seio venoso coronário ou arterialização do seio venoso coronário com os mesmos efeitos de fistula arteriovenosa, implante de artéria mamária em túnel miocárdico, a ridícula técnica proposta de ligadura de artérias mamárias e, por último, a anastomose aorto-coronária através de segmento de veia safena (ponte de safena) e a anastomose de artéria mamária-coronária. Procuramos sempre proteger nosso paciente com a terapêutica clínica e cirurgia só quando radical e consagrada pelo sucesso.
No domínio da terapêutica clínica da coronariopatia crônica estável nas duas primeiras décadas (40 e 50) eram utilizados a papaverina e os nitratos por via oral, alem de as crises anginosas serem aliviadas pela Trinitrina sublingual ou inalação do nitrito de amilo; depois, com o emprego dos primeiros antagonistas do cálcio (Verapamil e Prenilamina, 1963), os resultados eram bem marcantes quanto à melhoria da tolerância aos esforços, exceto no estágio de instabilidade miocárdica e sintomática, que se apresentava - como ainda hoje - temida e resistente à terapêutica dilatadora coronária isolada.
Em meados da primeira década (1945) foi introduzido o anticoagulante oral como o agente de profilaxia e tratamento do enfarte agudo miocárdio; período de grande entusiasmo, marcado pela excessiva produção de publicações em todos os quadrantes da terra, fazendo apologia das excepcionais virtudes da nova terapêutica, capaz de reduzir os índices de morbidade e, principalmente, de prevenir o enfarte como dependente de trombose, inesperada e súbita.
Participamos desde sua introdução, por estarmos engajados nos ditames da ortodoxia e da teoria trombogênica de Herrick. Mas, após os repetidos insucessos do anticoagulante oral na imediata prevenção do enfarte agudo do miocárdio e da morte súbita, nos casos de síndrome de enfarte iminente, em crescendo, resolvemos abandonar o seu emprego em 1954, e posicionamo-nos ao lado daqueles que combatiam aquela terapêutica, que nos parecia não ajustada aos mecanismos fisiopatológicos desencadeantes daquela síndrome do pré-enfarte e do próprio enfarte agudo do miocárdio.
No fim da terceira década (1969) o anticoagulante oral foi definitivamente abandonado pelos cardiologistas brasileiros, reconhecendo-se o seu fracasso absoluto, a despeito da volumosa bibliografia produzida durante 24 anos, caracterizada por exaltação nunca vista do agente profilático e terapêutico. Ao mesmo tempo, ridicularizam-se os opositores ao método, da mesma maneira como se faz hoje com os que não comungam no entusiasmo pela cirurgia de ponte de safena. Mais uma vez estamos do lado oposto dessa cega maioria, aguardando a introdução da angioplastia através dos raios Laser que deve acabar com a operação da ponte de safena e implante de mamária e restabelecer a terapêutica clínica, restaurando o respeito à dignidade humana com práticas condizentes com a fisiopatologia melhor estudada e propiciando vida melhor.
É dever do médico submeter qualquer método novo de tratamento clínico ou cirúrgico ao fórum competente, para debate e defender os seus pontos de vista mediante apresentação de sua experiência clínica ou experimentação em animal, através de nota prévia ou trabalhos. O objetivo maior não é guardar segredo sobre os achados próprios e utilização egoística do método, que deve ter o caráter de utilidade e benefício atribuídos, ao dispor dos médicos e possíveis pacientes que possam ser beneficiados.
Aos ocasionais responsáveis por fórum competente de avaliação e aprovação de trabalhos médicos, deve ser vedada qualquer atitude discriminatória, o pré-julgamento ou o boicote a qualquer assunto médico com novo enfoque, devidamente registrado por autor responsável, porque da discussão e controvérsia deve nascer a verdade e perecer aquilo que não tem valor intrínseco, evitando-se a repetição do que ocorreu com o anticoagulante oral (1945-1969) e certas tentativas cirúrgicas de revascularização miocárdica, exemplos não discutidos mas previamente consagrados e posteriormente abandonados por falta de sustentação nos resultados da prática médica, tendo o homem sido utilizado dentro da lógica, in vivo, fundamentados apenas na boa intenção, mas como conduta experimental não condizente com a sua condição de animal nobre.
Quando a terapêutica clínica mostrar-se suficiente na garantia de vida confortável e produtiva, preservação de boa saúde com apreciável tempo de sobrevida, baixas mortalidades e morbidade, o médico tem todo o direito de mantê-la e não utilizar-se de métodos cirúrgicos paliativos e repetitivos, em defesa do paciente sob seus cuidados, que deve representar uma orientação segura e de resultados comprovadamente valiosos e satisfatórios".
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