Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Mecanismos Patológicos nos Três Estágios da Coronariopatia

 

Quintiliano H. de Mesquita, Cardiologista

 

A evolução da coronariopatia crônica caracteriza-se por três estágios bem definidos do ponto de vista anatômico ou estrutural, funcional e clínico ou sintomático; no tocante aos mecanismos desenvolvidos em cada estágio, há apenas o consenso geral quanto ao estágio inicial ou processo estável da angina do esforço, enquanto a angina instável e o enfarte agudo do miocárdio continuam no domínio das hipóteses, a despeito do grande avanço tecnológico alcançado na Cardiologia na avaliação mais sofisticada da função do coração e da maior intimidade na apreciação das suas propriedades fundamentais, além do domínio absoluto na manipulação de todo órgão com objetivos diagnósticos e terapêuticos, cujo desenvolvimento tem sido marcante nas últimas décadas.

 

Assim a angina do peito estável - primeiro estágio - é facilmente reconhecida na clínica e confirmada por todo o elenco de exames subsidiários a disposição do cardiologista e o mecanismo fisiopatológico é pacificamente aceito. Caracteriza-se por mecanismo no qual se identifica a causa desencadeante - esforço físico ou estresse psico-emocional de aumento do trabalho do coração frente ao suprimento sanguíneo por fluxo coronário, fixo e deficiente, produzindo o efeito regional isquêmico: perda de contratilidade delimitada dentro de poucos segundos, redução da fase de ejeção, aumento do volume e da pressão final diastólicos, enquanto dura a isquemia, ocorrendo como efeito compensatório a hipercontratilidade das regiões miocárdicas não isquêmicas. Tais efeitos cessam portanto com o retorno à condição do equilíbrio coronário-miocárdico: suprimento sanguíneo satisfazendo a demanda física. Cada episódio de insuficiência coronária relativa assim desencadeada repercute na região miocárdica dependente como uma agressão física, química estrutural, a qual vai se constituir como a maneira de transformação de miocárdio normal nobre em áreas estruturalmente alteradas não musculares e fibróticas que caracterizam a doença miocárdica isquêmica, condição a nosso ver de maior importância prognóstica na gênese dos estágios mais avançados do que a condição de aterosclerose coronária e os aspectos obstrutivos desenvolvidos.

 

Deve-se notar que no primeiro estágio a demanda miocárdica maior que o suprimento pelo fluxo coronário caracteriza a insuficiência coronária relativa - déficit de oxigênio e elementos energéticos e nutritivos - primária e a insuficiência miocárdica regional secundária com definidas alterações hemodinâmicas da função ventricular.

 

Os segundo e terceiro estágios da coronariopatia crônica ocorreu tendo como base a doença miocárdica isquêmica bem delimitada por regiões do miocárdio são circunvizinhas e às vezes em mistura com tecido pouco nobre ou alterado em sua estrutura; são tidos como graus diferentes e sucessivos e atribui-se o mecanismo fisiopatológico como tendo origem nas artérias coronárias. A princípio tudo partiria da trombose coronária primária em organização no segundo estágio e completada com o conseqüente enfarte do miocárdio.

 

No fim da década de 60, quando ficou reconhecido o fracasso do anticoagulante oral na prevenção do enfarte, embora sempre bem-sucedido nos processos de prevenção e tratamento dos processos venosos, houve um real abalo na concepção de Herrick, principalmente diante da postura dos anátomo-patologistas dissidentes (1956) que clamavam pelo enfarte miocárdico freqüente sem trombose coronária concomitante.

 

Diante disso começaram a pensar em outro possível mecanismo para os segundos e terceiros estágios, mas também que tivesse origem direta na coronária satélite da região isquêmica ventricular e o enfarte miocárdico como conseqüência. Por isso, o espasmo coronário passou a ser considerado como responsável por um e outro, constituindo mais uma alternativa para explicar-se a angina instável e o enfarte do miocárdio.

 

Como se vê, a ortodoxia mantém arraigada fixação no processo primário coronário. mas continua devendo uma resposta definitiva aos anatomo-patologistas sobre "Trombose coronária: causa ou conseqüência do enfarte miocárdico?".

 

Tem sido muito freqüentes os achados cineangiocoronariográficos de artérias coronárias normais (síndrome X), com lesões obstrutivas mas pérvias no enfarte agudo do miocárdio e outros em que a obstrução coronária completa não coincide com enfarte recente nem antigo; no primeiro a interpretação cômoda tem sido a de fibrinólise espontânea e quanto ao segundo achado não se aventuram a explicar.

 

Tudo continua ainda para ser explicado a despeito da rica aparelhagem e técnicas avançadas a disposição da Cardiologia, principalmente nos centros cardiológicos universitários que não enfrentam as indagações fisiopatológicas e os menos avisados concluem facilmente sobre o que ainda é pendente e carece de confirmação. Com freqüência ocorre também o enfarte do miocárdio denominado por Bulkley como paradoxal, porque encontrado em segmento miocárdico frontal e dependente de ponte de safena e coronária pérvias.

 

Na angina instável tem sido freqüentes as referências de trombose intracoronaria e neste particular os recentes achados de Higashino e col. (1987) são muito curiosos e significantes porque na fase aguda da angina instável - menos de doze horas do último ataque prolongado - observaram 70% dos casos com trombose intracoronária e na fase crônica (média de um mês após as crises), registraram 0% de trombose intracoronária.

 

Interessantes observações foram feitas por Fuchs e col. (1985) sobre plaquetas agrupadas circulantes em trinta pacientes com angina estável e em 22 pacientes com angina instável. Plaquetas agrupadas em angina estável são em maior número do que nos casos de controle, mas registradas em 72% dos dois grupos e em caráter irreversível. O mais alto valor de plaquetas agrupadas era observado na angina instável: 89,2% reversíveis e 10,8% irreversíveis. Achavam ainda que na angina instável reversíveis agregados plaquetários sejam formados e que podem obstruir transitoriamente as artérias coronárias.

 

Da apreciação dos trabalhos sobre o emprego dos trombolíticos, administrados no enfarte agudo do miocárdio, um habitual comportamento na avaliação dos casos caracterizados o mais precocemente possível: quando achada a artéria coronária satélite do segmento enfartado totalmente obstruída, pratica-se uma rotina seqüencial para avaliação do processo obstrutivo arterial; em primeiro lugar administra-se a trinitrina intracoronária, caso cesse a obstrução conclui-se pelo espasmo coronário como causa de enfarte não sendo alterado o processo obstrutivo, passa-se ao emprego do fibrinolítico intracoronário, se houver a recanalização arterial então se admite trombose coronária como a causa do enfarte; caso contrário, persistindo a obstrução completa da artéria coronária o ato invasivo é interrompido, passando-se a considerar o caso como enfarte frente a obstrução aterosclerótica antiga. Isso tem sido observado nos trabalhos que se destinam a apurar o mecanismo fisiopatológico do enfarte agudo do miocárdio, com terapêutica de urgência, considerada em certos centros como heróica; contudo, tais manobras parecem-nos suspeitas e diversionistas porque terminam quase sempre em implantação de pontes de safena simples ou seqüenciais e completadas com implantes de mamária.

 

Dessa maneira, os amigos da ortodoxia abalada em fins da década de 60 com o fracasso dos anticoagulantes orais e atribulados ainda mais com os conceitos dos anátomo-patologistas dissidentes, procuram nos últimos tempos ignorar o que passaram e parecem dormitar admitindo a trombose coronária como a causa primária, quando setores mais lúcidos e exigentes continuam se perguntando: Trombose coronária causa ou conseqüência do enfarte agudo do miocárdio? Ao que poderíamos ajuntar: Não seria secundária a trombose coronária fibrinolisada no enfarte agudo do miocárdio?

 

No meio ortodoxo aparentemente continuam pensando na trombose coronária e no espasmo coronário como causas da angina instável e do enfarte do miocárdio e ignora-se a controvérsia existente.

 

Em 1972, elaboramos a Teoria Miogênica do enfarte agudo do miocárdio, na qual a angina instável representa o estágio precursor do enfarte e a sua transformação em enfarte agudo ocorre apenas como a perpetuação do processo comum a ambos os estágios, tendo como conseqüência o enfartamento e necrose miocárdica.

 

Segundo nosso enfoque a angina instável ocorre graças ao processo de severa degradação miocárdica - miocardiopatia isquêmica - em que se desenvolve a insuficiência miocárdica regional primária, espontânea, episódica, seguida por alterações hemodinâmicas comprometendo a função ventricular e produzindo secundariamente a isquemia miocárdica por estagnação circulatória, podendo ocorrer ainda agregação plaquetária e possível manifestação espástica in situ ou à distância, completada por alterações eletrocardiográficas e sintomatologia dolorosa.

 

Assim a agregação de plaquetas e as manifestações vasospásticas secundárias, poderiam ser confundidas e entendidas como processos primários, quando na verdade parecem-nos secundárias e desaparecem desde que a claudicação contrátil da região ventricular severamente comprometida se recupere e restabeleça-se da isquemia miocárdica conseqüente, responsável pela sintomatologia alarmante.

 

Admitimos sempre que os processos de coronário-miocardiopatia isquêmica são caracterizados por deficiência contrátil regional que se agrava por esforço, mas dependendo do avançado grau de comprometimento, pode gerar inesperada e espontânea claudicação do inotropismo ventricular regional, desencadeando isquemia secundária recíproca, invertendo-se a seqüência do processo isquêmico primário e hipocontratilidade miocárdica secundária da angina estável; ocorrendo a qualquer tempo no curso natural da coronariopatia crônica, podendo ser silenciosa ou sintomática.

 

A transformação freqüente de um processo de angina instável, síndrome intermediária ou de angina em crescendo, em uma ruidosa e alarmante instalação de enfarte agudo do miocárdio, tem sido admitida quer como processo vasospastico coronário quer como processo trombótico primário desencadeantes da necrose miocárdica secundária. Entretanto, nossa experiência clínica de 1972 a esta parte, que reúne 199 pacientes de angina instável, como casos sustados e revertidos a estabilidade sintomática da coronariopatia crônica, sem evoluir para o enfarte aparentemente iminente e sob a ação decisiva do cardiotônico, tem nos levado a considerar tais aspectos como essenciais e característicos do processo eminentemente miogênico, em que as crises de insuficiência miocárdica regional primária e espontânea, desencadeiam secundárias manifestações isquêmicas, reversíveis e episódicas.

 

No passado assistimos casos dessa natureza evoluírem fatalmente para o enfarte agudo do miocárdio, a despeito de todos os ensaios terapêuticos então recomendados, até que, a partir de 1972, a angina do peito instável resistente a terapêutica medicamentosa tornou-se fácil e rapidamente controlável pelo cardiotônico, o que parece exigir a transferência dos cuidados para com o estado das artérias coronárias para o estado do inotropismo ventricular comprometido e responsável pela síndrome clínica.

 

Diante de tais sucessos na Clinica, devemos enfocar o enfarte agudo do miocárdio sob nova ótica, como seja a perpetuação da insuficiência regional primária, desencadeadora do afrouxamento e abaulamento miocárdico, estase circulatória na artéria satélite coronária, agregação de plaquetas, manifestações vasospásticas no mesmo sítio vascular ou de vizinhança, alterações hemodinâmicas comprometendo a função ventricular e gerando isquemia miocárdica secundária, precordialgia e irradiações dolorosas e registro das características eletrocardiográficas de injúria e necrose miocárdicas. Por fim, trombose coronária secundária não obrigatória.

 

Recentemente, Ambrose e col. (1988) situaram o enfarte agudo do miocárdio sem onda Q do ECG entre a angina instável e o enfarte com onda Q, admitindo assim um novo estágio, o qual recebemos com especial ânimo porque de bom grado o enquadramos perfeitamente dentro dos ditames da Teoria Miogênica, quando está em jogo o miocárdio comprometido em graus diferentes que poderiam representar do ponto de vista prognóstico e de risco, o Menor (angina instável), o Médio (enfarte sem onda Q) e o Maior (enfarte com onda Q ou transmural), como manifestações de insuficiência miocárdica regional primária, reversível na primeira e declarada e irreversível nos dois últimos com alterações estruturais de graus diversos.

 

Do trabalho de Ambrose e col., no tocante ao registro cineangiocoronariográfico dos processos obstrutivos totais e sub-totais, registramos comparativamente nos enfartes sem onda Q e com onda Q, respectivamente: 26% e 90% e 41% e 76%. Daí, o prognóstico mais favorável no enfarte sem onda Q e com baixas incidências de complicações. Todavia, o reenfarte a curto e médio prazos é bem mais freqüente no enfarte sem onda Q (43%) que no com onda Q (18%). A mortalidade hospitalar no enfarte sem onda Q é de 5-8% e no com onda Q de 15-20%. A longo prazo (dois a cinco anos) a mortalidade é praticamente idêntica para os dois aspectos.

 

Da apreciação dos casos com e sem onda Q chega-se a conclusão de que parecem ser de fato parte do estágio mais avançado da miocardiopatia isquêmica, em dada região miocárdica evolvente para o enfarte, registrando-se o processo de maior ou menor extensão, cujo diagnóstico se faz por exclusão do mais severo através das reações enzimáticas seriadas e do ECG com onda Q, enquanto o outro sem onda Q difere da angina instável por alterações eletrocardiográficas duradouras ou lentamente reversíveis. Assim, parece-nos que Ambrose e col. têm muita razão em preconizar o enfarte do miocárdio sem onda Q como a ligação entre a angina instável e o enfarte com onda Q geralmente confirmado como transmural e com maior incidência de trombose coronária (Roberts e Baroldi).

 

Nota: Este artigo foi extraído de capítulo com o mesmo título do livro "Como escapar da ponte de safena e do enfarte do miocárdio só com remédio", Mesquita, QHde: Editora Ícone, 1991 cujo resumo pode ser visto em http://www.infarctcombat.org/livros/icem.html

 

Veja também

Seção A Doença