Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Importância do Inotropismo Ventricular no

Prognóstico da Doença Cardíaca Isquêmica

 

Quintiliano H. de Mesquita, Cardiologista

 

 

Os efeitos imediatos da isquemia sobre o inotropismo ventricular foram registrados por Tennant e Wiggers (1935), experimentalmente no cão, através da ligadura de ramo arterial coronário: dentro de 1 minuto a região miocárdica isquêmica perdia a contratilidade, notando-se o estiramento sistólico ao invés do encurtamento da fibra miocárdica e conseqüente abaulamento paradoxal da região no momento da ejeção ventricular. Com a cessação da isquemia provocada durante 23 minutos e seguida pela reperfusão miocárdica, restabelecia-se prontamente a contratilidade de toda a região.

 

Nas décadas seguintes, a especulação experimental trouxe subsídios importantes sobre o inotropismo ventricular e a resistência miocárdica sob o impacto da isquemia aguda, indicando especificamente que o inotropismo regional é anulado dentro de alguns segundos, notando-se em seguida o surgimento do abaulamento regional ou motilidade passiva e paradoxal; e, dependendo do tempo da isquemia imposta (< 45 minutos), a reperfusão miocárdica pode restabelecer de pronto a contratilidade regional ou, se mais demorada (1 - 3 horas), poderá levar dias e até semanas para seu restabelecimento completo ou parcial.

 

Alguns estudos têm revelado certas situações miocárdicas críticas, provocadas por duradoura isquemia, as quais submetidas à reperfusão miocárdica evoluem celeremente para a deterioração paradoxal e necrose final, a despeito da qualidade e quantidade normais do fluxo sangüíneo e ótima concentração de oxigênio. Quando se provoca o enfarte do miocárdio a região ficará marcada indelevelmente pela presença de cicatriz fibrótica.

 

Outros estudos mais detidos e dirigidos para a apreciação da composição dos elementos químicos energéticos – Trifosfato de Adenosina e Creatinina Fosfokinase (CP) – forneceram subsídios importantes sobre o metabolismo miocárdico regional com a rápida depleção daqueles componentes (ATP e CP) e a sua ulterior recuperação lenta, mas efetiva, ocorrendo em certos casos de degradação fisiopatológica da estrutura miocárdica mesmo sem enfarte e outras lesões fibróticas não musculares, com desvios metabólicos comprometendo o processo das trocas essenciais e da fixação dos elementos energéticos e oxigênio, representando miocárdio funcional e organicamente comprometido, indiferente ao restabelecimento da perfusão miocárdica, sendo conhecido como o estado de “no reflow”. Nessas condições tornam-se irrelevantes a qualidade e quantidade de sangue novo, por falta de condições de receptividade e aproveitamento por parte do miocárdio.

 

Na década de 50, contando-se tão somente com a eletrocardiografia e a radioscopia para a avaliação dos processos isquêmicos agudos e crônicos, em seu seguimento clínico, casos com e sem enfarte prévio, tínhamos uma casuística interessante e relativamente numerosa – 5 casos de aneurisma ventricular esquerdo pós-enfarte – em situações topográficas caprichosas e particularmente significativas quanto à integridade ou repercussão fisiopatológica sobre a função ventricular esquerda de tais casos e tivemos a ventura de conseguir despertar o interesse do notável cirurgião norte-americano Charles P. Bailey (Philadelphia, 1954), e entregar-lhe o nosso 5º caso de aneurisma ventricular esquerdo + insuficiência cardíaca irredutível, o qual veio a constituir-se como o 1º caso e bem sucedido de aneurismectomia ventricular, registrado em um nosso trabalho posterior.

 

Na década de 60, com o advento da cineangiografia coronária e ventriculografia a serviço da Cardiologia, a silhueta cardíaca – imagens sistólica e diastólica – tornou-se corriqueira e familiar. Daí registra-se que Tinsley Harrison (1965) foi o primeiro investigador a conceitualizar o papel da assinergia e/ou dissinergia ventricular, causando alterada função ventricular esquerda em pacientes com doença coronária.

 

Pouco depois, Herman e col. (1967) apresentaram detalhada classificação sobre dissinergia ventricular – termo preferido por Harrison – descrevendo vários subtipos. Todos os aspectos de dissinergia representavam essencialmente os diversos graus dos efeitos segmentares miocárdicos crônicos do impacto continuado e recidivante da isquemia na patologia coronária sobre o inotropismo ventricular e a conseqüente degradação funcional só ou também estrutural dessas regiões miocárdicas.

 

Nessa altura, os cirurgiões de coração já se ocupavam da extirpação das regiões acinéticas ventriculares e dentre outros, Schimert (1969), registrava às vezes áreas miocárdicas só funcionalmente comprometidas, isto é, ainda sem definidas lesões estruturais ou patológicas.

 

Devem merecer registro especial os estudos de Raftery e col. (1969) e de Burch e col. (1970-1973) sobre casos de cardiomegalia e disfunção ventricular na patologia coronária crônica, cunhados pelos últimos com a nova designação de miocardiopatia isquêmica.

 

Dos estudos daquele período, segundo Baxley e Reeves (1971), é importante registrar-se que a dilatação ventricular esquerda e baixa fração de ejeção em pacientes com localizadas anormalidades de contração ventricular esquerda, não significam necessariamente fraca e generalizada função ventricular esquerda.

 

De acordo com essa evolução histórica, fomos nos habituando a apreciar os aspectos ventriculares decorrentes do impacto da isquemia sobre o inotropismo ventricular, com seus efeitos imediatos ou agudos e os tardios ou crônicos; apresentando-se com sedes específicas na silhueta ventricular esquerda e diretamente dependentes de cada artéria coronária epicárdica maior e de sua distribuição regional e transmural.

 

Com o advento da Ecocardiografia, esses fenômenos agudos e crônicos tornaram-se familiares aos observadores, através das correspondentes variações da motilidade regional ventricular, do normal para a perda ou anulação dessa motilidade desencadeada pela isquemia, contrastando com a hipermotilidade de regiões normais distantes ou circunvizinhas, durante breves episódios de angina pectoris e o seu retorno à normalidade com a cessação da dor. Entretanto, em casos de isquemia de maior duração a recuperação da motilidade regional se realiza dentro de dias ou semanas.

 

Nos processos dissinérgicos, a identificação é substancialmente importante como indicação objetiva dos efeitos degradantes dos processos coronários crônicos, através da isquemia produzida pela atividade diuturna sobre o inotropismo de região limitada ou de regiões ventriculares extensas; desenvolvendo-se redução da motilidade ou mesmo a inversão paradoxal, em confronto com o normal das demais regiões íntegras, como conseqüência de comprometimento miocárdico só funcional ou também estruturalmente comprometido.

 

Tornou-se consensual que uma área ventricular sob isquemia aguda perde a sua contratilidade ou motilidade, enquanto dura o processo isquêmico e que as áreas isentas ou normais se mostram com contratilidade aumentada ou hipermotilidade compensadora.

 

Atribuímos a esse quadro um processo de confronto intersegmentar, em que o normal deve contribuir com a sua exaltação física para sobrecarregar o segmento isquêmico e hipotônico, com o impacto de volume sangüíneo desviado em sua direção na fase de ejeção ventricular esquerda, e como expressão de desarmonia entre o normal e o patológico. Todavia, quando dois ou mais segmentos são simultaneamente passiveis de isquemia provocada por estresse físico ou psico-emocional, o confronto intersegmentar é praticamente inexistente por causa da hipotonia generalizada e, segundo nos parece, como expressão aparente de harmonia patológica.

 

Diante de tais constatações e partindo de uma hipótese, chegamos em 1792 a elaboração da Teoria Miogênica (1) para a interpretação dos mecanismos fisiopatológicos dos 3 estágios clínicos da doença cardíaca isquêmica; considerando-se fundamentalmente o miocárdio ventricular como um todo deficiente contrátil, sem assumir o estado de insuficiência cardíaca em condições de repouso, mas com características hemodinâmicas que se assemelham ao incipiente quadro de insuficiência ventricular esquerda – aumento de pressões e volumes finais sistólico e diastólico e capilar pulmonar – como conseqüência imediata do processo isquêmico transitório, certamente degradante pelo caráter repetitivo que vai comprometer cronicamente o miocárdio, contribuindo para a constituição da miocardiopatia isquêmica.

 

Inspiramo-nos nos efeitos do impacto da isquemia aguda e crônica sobre o inotropismo ventricular na doença cardíaca isquêmica e então passamos a interpretar o mecanismo fisiopatológico das 3 condições clínicas evolutivas como de caráter miogênico e portanto essencial e diretamente dependentes das condições do inotropismo ventricular:

 

1.               Angina estável: isquemia miocárdica primária desenvolvida por aumento da demanda miocárdica frente a fluxo sangüíneo coronário fixo e reduzido, responsável pelo desencadeamento da insuficiência miocárdica regional, secundária. A isquemia miocárdica pode provocar espasmo coronário no mesmo sitio coronário ou à distância. A insuficiência miocárdica regional pode gerar estase circulatória e propiciar o aparecimento de agregados plaquetários, simulando trombos intracoronários, mas reversíveis com a cessação da isquemia e estase coronária.

2.               Angina instável: mecanismo fisiopatológico inverso da angina estável – caracterizada por áreas miocárdicas severamente alteradas que desencadeiam a insuficiência miocárdica regional primária, episódica e espontaneamente reversível, responsável pelo processo isquêmico secundário e freqüentemente coincidente com processos secundários de vasospasmo coronário e agregados plaquetários intracoronários transitórios.

3.               Quadro clínico enfartante: baseia-se em episódica e espontânea insuficiência miocárdica regional primária, tornada espontaneamente irreversível, com estagnação circulatória e miocárdica e conseqüente isquemia miocárdica absoluta secundária; seguida por enfartamento e necrose miocárdica e possível presença de vasospasmo coronário e agregados plaquetários intracoronários, desenvolvidos secundariamente, culminando com a trombose coronária secundária, não obrigatória.  

 

De acordo com o mecanismo miogênico, a preocupação fundamental se situa com relação aos efeitos do impacto da isquemia sobre o inotropismo ventricular e a degradação progressiva da estrutura miocárdica no longo prazo, exigindo-se, portanto, a preservação do inotropismo ventricular como fator de garantia de uma sobrevida mais longa e prevenção do enfarte do miocárdio, insuficiência cardíaca e morte súbita, projetando-se como agente terapêutico natural e imprescindível: o cardiotônico.

 

Entretanto, coincidentemente, quando da elaboração da Teoria Miogênica, proclamava-se preconceituosamente que o emprego do cardiotônico nos processos isquêmicos – angina estável, angina instável e enfarte miocárdico – só seria admitido quando na vigência de insuficiência cardíaca e no caso de sua não  presença o cardiotônico teria efeito deletério sobre o processo isquêmico por aumento do consumo de oxigênio. Entre outros trabalhos sobre a propalada contra-indicação do cardiotônico nessas condições, destacava-se o trabalho de Maroko e col. (1971).

 

A nossa experiência clínica veio anular frontalmente os preconceitos existentes, escudado no papel inédito e marcante do cardiotônico através da excepcional e imediata sustação da angina instável (AI), em crescendo; representando investida pioneira que veio comprovar os insuperáveis e benéficos efeitos da nova terapêutica, preconizada desde então como específica pela Teoria Miogênica.

 

Em seguida passamos ao emprego do cardiotônico na angina estável, procurando preservar o inotropismo miocárdico e assim prevenir o enfarte miocárdico e a insuficiência cardíaca.

 

Por último, o cardiotônico passou a ser empregado no enfarte agudo do miocárdio com receptividade absoluta e revolucionária transformação em seus aspectos enzimáticos, evolutivos; apresentando-se o cardiotônico (Estrofantina G ou K, EV) como capaz de evitar, sustar ou pelo menos atenuar o enfarte agudo do miocárdio. Conseqüentemente, passamos a interpretar os casos admitidos em nossa Unidade Coronária (UC), aparentemente tidos como portadores de enfarte agudo do miocárdio, como casos de Quadro Clínico Enfartante (QCE); tais casos foram admitidos em nossa UC com a média de 8 horas, desde a instalação da crise dolorosa.

 

Partíamos assim do princípio de que o miocárdio na doença coronária crônica estável é carente de medicamentos que garantam o seu inotropismo, particularmente vital para o controle da fisiopatologia miogênica na AI e QCE.

 

Pouco tempo depois, Puri (1974) em brilhante e excepcional trabalho experimental no enfarte agudo do miocárdio, consagrou o emprego do cardiotônico, com a observação e registro gráfico inquestionável, demonstrando a resposta contrátil bem definida com sede no miocárdio hipotônico da região intermediária do enfarte ou zona de transição para o miocárdio normal circunvizinho e sua manutenção de até 60 minutos de observação; contrariando assim o que se propalava então como efeito deletério do cardiotônico, por aumento do consumo de oxigênio e da isquemia e perda da contratilidade na referida região; aspectos esses notados por Puri quando das provas terapêuticas com o emprego da metoxamina e do isoproterenol em condições idênticas.

 

Destacamos ainda naquele período de afirmação do nosso novo enfoque terapêutico, os trabalhos experimentais de Kerber e colegas (1974), Banka e col. (1975) e de Vatner e Baig (1978) que vieram corroborar os achados de Puri e marcaram assim o início de uma nova era, quando demonstraram que o cardiotônico recupera a contratilidade da área isquêmica e hipocontrátil e a mantém assim durante muito tempo, contrariando antigos conceitos que lhe atribuíam agressão miocárdica e possível aumento da área necrótica.

 

Numerosos trabalhos têm se ocupado do emprego do cardiotônico nos processos dissinérgicos registrados na doença cardíaca isquêmica e registra-se generalizada concordância sobre a vantagem de sua ação ao propiciar melhores condições de contratilidade e da função ventricular. (O’ Rourke e col, 1976; Amsterdan e col., 1976; Ferlinz e col., 1978; Vogel e col., 1977; De Mots e col., 1976 e Kleiman e col., 1978)

 

Do ponto de vista clínico, merece citação especial o trabalho de Kotter e col. (1978) em que referiram a existência de deficiência na função ventricular esquerda dos portadores de coronariopatia crônica, mas sem evidência de insuficiência cardíaca. Registraram significativa queda na pressão e no volume residuais diastólicos do ventrículo esquerdo sob a ação dos glucosídeos digitálicos e que a diminuição no volume ventricular e da tensão parietal do ventrículo esquerdo poderia prevenir ou mesmo diminuir o aumento da demanda de oxigênio causada pela melhor contratilidade. Não observaram variação no consumo de oxigênio miocárdico antes e após a Digoxina, seja em repouso ou durante a estimulação rítmica atrial; da mesma maneira, a extração de lactato miocárdico não apresentou alterações. Não foi registrado metabolismo anormal de lactato, como índice de anaerobiose e conseqüência da digitalização. Acharam razoável administrar digital àqueles pacientes com coronariopatia, sem evidência de insuficiência cardíaca congestiva, mas exibindo limitada tolerância ao esforço, provavelmente causada por diminuída reserva contrátil. Kotter e colegas acentuaram que, a despeito dos efeitos benéficos sobre a função ventricular esquerda, a digitalização não alterara definitivamente o grau de tolerância ao esforço, no qual a angina ocorre. Assim, não admitiram a Digoxina como agente anti-anginoso e situaram como objetivo próximo da terapêutica digitálica a insuficiência ventricular esquerda, como freqüente conseqüência da coronariopatia crônica.

 

A nossa experiência clínica de quase 3 décadas, com os 3 estágios da coronariopatia crônica, consagra o cardiotônico como o medicamento anti-enfarte e o dilatador coronário como o anti-angina, cujo emprego tem sido permanente e a suspensão tem coincidido freqüentemente com enfarte agudo ou a nítida piora sintomática; e, especialmente, na angina instável com característica de pré-enfarte, o cardiotônico tem sido sempre insuperável e com características de terapêutica específica.

 

A nossa casuística de angina estável contava com 684 pacientes, de angina instável com 199 pacientes e de quadro clínico enfartante com 1290 pacientes (período de março de 1972-1979).

 

Na década de 80 fomos surpreendidos por Braunwald e Kloner (1982) quando lançaram nova denominação para os fenômenos miocárdicos decorrentes de manifestações isquêmicas agudas já conhecidos desde Tennant e Wiggers (1935) e representados pela perda de contratilidade miocárdica regional, dependente do tempo de duração da isquemia e subseqüente recuperação coincidente com a repercussão miocárdica. Tal fenomenologia foi designada por esses autores como “myocardial stunning”, equivalente à disfunção miocárdica regional por anulação transitória do inotropismo e representando um processo agudo, mas reversível, em função da duração da isquemia de até 45 minutos e a partir daí só dentro de dias ou semanas após o restabelecimento do fluxo sangüíneo.

 

No mesmo sentido, Bashour e colegas (1983) consideraram tal fenomenologia com características eletrocardiográficas e hemodinâmicas, denominadas respectivamente como “electrical and mechanical stunning”, coexistentes e restauradas simultaneamente ou não pela reperfusão miocárdica, dependentes da duração da isquemia.

 

Em 1989, Rahimtoola descreveu como estado de “miocárdio hibernante” certos aspectos miocárdicos de deformação da silhueta ventricular e perturbada função ventricular esquerda, persistentemente e em repouso, conseqüentes a reduzido fluxo sangüíneo coronário; os quais podem ser parcialmente ou totalmente restaurados, desde que a relação suprimento de oxigênio/demanda miocárdica seja favoravelmente modificada, quer pelo aumento do fluxo sangüíneo mais redução da demanda miocárdica quer por esta última isoladamente.

 

Tal estado resulta provavelmente de uma resposta relativamente incomum frente ao reduzido fluxo sangüíneo coronário em repouso, no qual o coração adapta sua função miocárdica ao nível do reduzido fluxo sangüíneo, mantendo-se aparentemente em equilíbrio, sem necrose nem sintomas isquêmicos. Obviamente, se o equilíbrio de suprimento sangüíneo/demanda miocárdica é subseqüentemente alterado desfavoravelmente, temporária ou permanentemente, ocorrem então sintomas ou sinais de isquemia e/ou de necrose miocárdica.

 

Repetidos episódios de isquemia podem levar à necrose e, portanto, são indesejáveis; assim a resposta hibernante do coração indica uma redução da função para lutar contra um reduzido fluxo sangüíneo, o que poderia ser considerado como um ato de autopreservação (pouco sangue, pouco trabalho) e o “coração tornado inteligente” (smart heart).

 

Rahimtoola refere estudos da década de 70, enfocando a reversibilidade de tais estados de disfunção ventricular esquerda em repouso com a revascularização miocárdica e reapresenta um caso assim recuperado e que foi publicado em 1982. Acha que o “hibernating myocardium” deve ser distinguido do “stunned myocardium” descrito por Braunwald e Kloner e também da transitória disfunção ventricular esquerda que é resultante de isquemia induzida por estresse, embora o miocárdio hibernante possa coexistir com ambas condições.

 

Do nosso lado, como simples espectadores das apresentações de Braunwald e Kloner (1982) e de Rahimtoola (1989), festejamos a preocupação desses autores como aspectos positivos que vêm se cristalizando por conscientização mais de caráter subliminar do que através de pesquisas mais objetivas e seriamente desenvolvidas sobre a avaliação da importância da manutenção do inotropismo ventricular para o prognóstico da doença cardíaca isquêmica, prevenção das complicações (enfarte do miocárdio, insuficiência cardíaca e morte súbita) e especialmente sobre a duração da sobrevida.

 

Ainda com relação à disfunção ventricular isquêmica (myocardial stunning) e também ao “coração hibernante”, acreditamos que o primeiro representa essencialmente os efeitos imediatos da isquemia aguda e o segundo os efeitos tardios ou prolongados da isquemia crônica e caracteristicamente recidivante. Sendo assim, admitimos que os segmentos miocárdicos afetados pelos repetitivos impactos da isquemia sobre o seu inotropismo podem se transformar ao longo do tempo no “coração hibernante” bem caracterizado pela ventriculografia. Dessa maneira, o “myocardial stunning” de hoje poderá ser o “hibernating myocardium” de amanhã.

 

Cabe aqui a afirmativa de Burch e colegas, realizada em 1972: “O paciente com coronariopatia não morre de coronariopatia, ele morre de doença miocárdica”

 

Em 1988, Donald C. Harrison, em importante simpósio tratando sobre novos conceitos de inotropismo na doença cardíaca isquêmica e hipertensão, como editor convidado, inicia seu trabalho pontificando: “A doença cardíaca isquêmica é a forma mais comum de doença cardíaca no mundo ocidental. Contudo, como cientistas e clínicos, estamos apenas começando a compreender a extensão deste problema e o impacto da atividade isquêmica sobre a função contrátil do coração”.

 

A despeito dessa introdução o referido simpósio não trouxe subsídios práticos importantes para o cardiologista na doença cardíaca isquêmica e destinou-se ao estudo de novo antagonista do cálcio e vasodilatador coronário – Nicardipina – propiciando aumento do fluxo coronário e reduzindo a demanda de oxigênio miocárdico.

 

As manifestações de Braunwald e Kloner (1982), Harrison (1988) e Rahimtoola (1989) vêm numa época em que os cardiologistas só dirigem suas atenções diagnósticas e terapêuticas à avaliação sistemática do estado panorâmico da angiografia coronária e não levam em conta o papel da função ventricular esquerda, degradada diuturnamente em seu inotropismo pelos sucessivos impactos da isquemia crônica, a despeito das já numerosas referências bibliográficas sobre a maior duração de sobrevida daqueles pacientes tratados cirúrgica e/ou medicamente com função ventricular conservada, em confronto com os portadores de flagrante disfunção ventricular.

 

Quer nos parecer que, neste final de década e em preparação para o início do novo milênio, os aspectos miocárdicos irão merecer melhor estudo e maior compreensão sobre o seu verdadeiro papel no destino da doença cardíaca isquêmica, porque as últimas manifestações aqui referidas parecem representar o eco de antigos conceitos com novas ressonância e roupagem.

 

Como se vê, os trabalhos de Tennant e Wiggers sobre o impacto de isquemia sobre o inotropismo ventricular e os de Wilson e colegas, nas décadas de 20 e de 30, quanto aos efeitos da isquemia provocada sobre o processo excitatório miocárdico, vieram de novo a tona batizados por Braunwald e Kloner como “myocardial stunning” – disfunção miocárdica regional – e diferenciadas por Bashour e colegas como “mechanical and electrical stunning”, respectivamente.

 

Rahimtoola interpretou os achados clínicos dos efeitos crônicos da coronariopatia sobre a função ventricular, através das comuns deformações da silhueta ventricular esquerda com evidentes distúrbios dos volumes finais diastólico e sistólico – caracterizações variadas da dissinergia ventricular descrita pioneiramente por Tinsley Harrison e logo depois complexamente subdividida por Herman e colegas – como manifestações do afrouxamento crônico do tônus miocárdico dos segmentos que compõem a silhueta ventricular e com equilíbrio funcional que minimiza seus efeitos em repouso e mostram-se exacerbadas pelo esforço ou sobrecargas psico-emocionais. Manifestações nas quais, freqüentemente, os volumes sistólico e diastólico se mostram quase idênticos, dando a impressão de coração paralisado ou com motilidade mínima de toda a imagem ventricular. Tal fenômeno foi então batizado por Rahimtoola como “coração hibernante” e diferente, segundo ele, do tipo descrito por Braunwald e Kloner – “myocardial stunning” – porque este resulta de processo isquêmico agudo, enquanto aquele é determinado por processo crônico de isquemia miocárdica.

 

No trabalho de Rahimtoola de 1989 é reapresentado um caso de coração hibernante, melhorado pela revascularização miocárdica (ponte de safena). No passado, os casos de dissinergia ventricular já haviam sido referidos como beneficiados pela ponte de safena; bem como tem sido freqüente a constatação de melhoria dessas regiões miocárdicas dissinérgicas como conseqüência do emprego do cardiotônico.

 

Do material colhido na década de 70, em nosso serviço hospitalar, observamos curiosos aspectos de graves dissinergias ventriculares com as características do “coração hibernante” em 4 casos operados com ponte de safena, dos quais apenas um tinha tal aspecto no momento do ato cirúrgico e permanecendo assim 22 meses após; nos 3 outros, antes da operação a silhueta ventricular era normal e tornara-se aumentada com mínimas diferenças entre as imagens sistólica e diastólica, a despeito das pontes de safena se acharem pérvias, respectivamente, dentro de 13, 36 e 44 meses após o ato cirúrgico. Aliás, Soloff (1972) e Bourassa e colegas (1972) já haviam indicado casos semelhantes de deterioração cardíaca – contratilidade ventricular esquerda – substituindo a dor anginosa, precoce ou tardiamente após o enxerto venoso aorta-coronário.

 

Em um dos 4 casos submetidos à operação de ponte de safena citados acima, no qual se registrou dentro de 36 meses após a cirurgia uma grande degradação miocárdica – quadro de cardiomegalia com volumes sistólico e diastólico quase idênticos na 2ª ventriculografia – o paciente foi beneficiado pelo tratamento com o cardiotônico durante 9 meses, com o 3º cateterismo revelando sensível melhora da contratilidade esquerda além da obstrução completa da ponte de safena aorto-descendente anterior esquerda.

 

Em 1978, publicamos trabalho sobre 29 casos tratados sob a ação do cardiotônico a partir da instalação do enfarte agudo do miocárdio e estudado por cinecoronariografia e ventriculografia, realizada pouco depois do enfarte e repetida com intervalo médio de 26 meses (14 – 46 meses); sendo a idade variável entre 29 – 68 anos e com a média de 51 anos. O volume residual sistólico apresentou-se inalterado em 22 casos (76%), melhorado em 5 casos (17%) e piorado em 2 casos (7%). Em nenhum dos casos estudados foi registrado o aspecto de coração hibernante descrito por Rahimtoola, o que é realmente contrastante com o que se viu naqueles 3 casos tratados com ponte de safena com ou sem implante de artéria mamária e que mostraram indisfarçável degradação da função ventricular com pontes de safena pérvias, medicamente tratados sem o cardiotônico.

 

Porque a ponte de safena pérvia pode deteriorar a função inotrópica do miocárdio revascularizado com a instalação do volumoso coração hibernante com volumes sistólico e diastólico quase idênticos?

 

Acreditamos que o estado miocárdico refratário à reperfusão miocárdica – estado de “no reflow” – poderia ser a resposta, porque o miocárdio mal irrigado por muito tempo e antes da revascularização não teria mais condições de ser beneficiado por sangue novo, mesmo sob pressão aorto-coronária relativamente superior e até por isso mesmo de efeito deletério por maior atrito. Tem sido freqüente a constatação de casos de coronariopatia crônica com ou sem enfarte prévio sob medicação isolada ou associada à cirurgia de revascularização miocárdica, que o tempo de sobrevida está mais na dependência da função ventricular esquerda do que do grau ou estado de alterações da circulação coronária.

 

Isso parece justificar nosso conceito de que o atual tratamento medicamentoso só ou associado à ponte de safena está desatualizado por que não conta com a medicação cardiotônica que preconizamos como fundamental e imprescindível, bem sucedida em nossa experiência clínica em um período de 17 anos, quando tratamos sobre o confronto de 2 épocas e 2 rotinas terapêuticas, isto é, antes de 1972 – sem cardiotônico – compreendendo casuísticas de nossa clínica privada com casos de coronariopatia crônica sem e com enfarte miocárdico prévio (2).

 

Confrontadas as 2 épocas através de resultados incontestes chega-se facilmente à comprovação de que o cardiotônico propiciou os melhores índices de Morbidade e Mortalidade e indiscutivelmente o tempo de sobrevida foi consideravelmente ampliado dos 64 anos para 70-72 anos de idade. O emprego do cardiotônico apresentou também uma mortalidade excepcional de 0,4% ao ano nos casos sem enfarte prévio e de 1,7% ao ano nos casos com enfarte prévio.

 

 Bibliografia  

1. Teoria Miogênica do enfarte do Miocárdio, Livro (Download gratuito)

2. Confronto de Duas Épocas e Duas Rotinas Terapêuticas, capítulo com o mesmo título do livro "Como escapar da ponte de safena e do enfarte do miocárdio só com remédio", Mesquita, QHde: Editora Ícone, 1991 (Confronto)

 

 

 

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