Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio
Memórias sobre nosso abandono da terapêutica anticoagulante em 1954
Em 1945 foi introduzido o anticoagulante oral como o agente de profilaxia e tratamento do enfarte agudo do miocárdio, de acordo com os conceitos da Teoria Trombogênica de James Herrick (1912); período de grande entusiasmo, marcado pela excessiva produção de publicações em todos os quadrantes da terra, fazendo apologia das excepcionais virtudes da nova terapêutica, capaz de reduzir os índices de morbidade e, principalmente, de prevenir o enfarte como dependente de trombose, inesperada e súbita.
Participamos desde a sua introdução, por estarmos engajados nos ditames da ortodoxia e da teoria trombogênica de Herrick. Mas, após os repetidos insucessos do anticoagulante oral na imediata prevenção do enfarte agudo do miocárdio e da morte súbita, nos casos de síndrome de enfarte iminente, em crescendo resolvemos abandonar o seu emprego em 1954 e posicionamo-nos ao lado daqueles que combatiam aquela terapêutica, que nos parecia não ajustada aos mecanismos fisiopatológicos desencadeantes daquela síndrome do pré-enfarte e do próprio enfarte agudo do miocárdio.
Em 1962, publicamos o trabalho "Anticoagulante e enfarte miocárdico" como tomada de posição e advertência quanto à falência do anticoagulante em prevenir o enfarte miocárdico e ausência de qualquer vantagem do anticoagulante no enfarte agudo do miocárdio. Havíamos assim parado com o seu emprego e nos voltado contra tal prática, principalmente porque, na síndrome intermediária a falência era absoluta; na coronariopatia crônica não havia condições de controle e no enfarte agudo do miocárdio o que se notava era um condicionamento e muita influência de "marketing" preparando a escalada e conduzindo a atividade terapêutica do médico. Muito se escreveu e a peso de ouro dos Laboratórios Farmacêuticos acerca das vantagens dos anticoagulantes, até que, de repente foi cessando aqui e acolá o entusiasmo pela droga lógica e badalada pelos seguidores da Teoria Trombogênica.
Nossa publicação causou estranheza diante do modismo reinante com o emprego sistemático do anticoagulante que empolgava o mundo cardiológico. Muitos colegas acharam que tal publicação era um gesto de coragem e afoiteza, diante da “onda de sucesso” e da empolgação reinante. Recebemos manifestações curiosas de surpresa e dúvida, tais como: "você é um camarada de coragem, manifestar-se contra o anticoagulante quando todo o mundo o enaltece", ao que sempre retrucamos dizendo que não era coragem, mas sim a nossa convicção e a decorrente obrigação que se tem quando se discorda da maioria, principalmente quando esta é artificialmente conduzida pela poderosa Industria Farmacêutica.
Na verdade, ela constituía apenas nossa convicção: pior cego é aquele que não quer ver, porque o fracasso do anticoagulante era fácil de verificar-se, principalmente frente à síndrome de enfarte iminente como então era denominada a angina instável, em crescendo. Éramos apontados por muitos com a sadia ironia comum ao individuo fanatizado dono da verdade como “aquele que não acredita e não usa a droga maravilhosa”.
Naquela publicação apresentamos 296 casos de enfarte agudo do miocárdio, tratados no próprio domicilio dos pacientes e sem anticoagulante, com repouso absoluto de 50 dias como era a regra. Registramos a mortalidade de 7,4%, presença de insuficiência cardíaca em 129 pacientes com 20 óbitos e sete casos de aneurisma ventricular esquerdo pós-enfarte. A baixa mortalidade e morbidade resultante nesses casos nos autorizava a desprezar os exagerados conceitos emitidos durante todos aqueles anos de modismo e condicionamento terapêutico.
Aliás, desde que os médicos perderam a sua independência de formular sua própria terapêutica, caminhamos todos celeremente para a dependência absoluta do que o mercado terapêutico passou a oferecer e pelo tempo que desejam os mentores da Farmácia industrializada.
Aquele trabalho era um protesto contra os desavisados cardiologistas da época em que se deixavam enganar e não desejavam se aprofundar quanto às razões das coisas do seu tempo.
Era a demonstração de que o modismo imperante não atingia unanimemente a classe médica e principalmente de que a lógica em Medicina nem sempre é boa conselheira. Com aquela experiência e observando os sobressaltos que a voz contrária produzia, seguimos em frente, rejeitando o seu emprego e procurando os motivos da falência do anticoagulante.
Em 1969, o anticoagulante oral foi definitivamente abandonado pelos cardiologistas brasileiros, reconhecendo-se o seu fracasso absoluto, a despeito da volumosa bibliografia produzida durante 24 anos, caracterizada por exaltação nunca vista do agente profilático e terapêutico. Ao mesmo tempo, ridicularizavam-se os opositores ao método, da mesma forma como se faz hoje com os que não comungam no entusiasmo pela cirurgia de ponte de safena. Mais uma vez estamos do lado oposto dessa cega maioria, aguardando a introdução da angioplastia através dos raios Laser que deve acabar com a operação de ponte de safena e implante de mamária e restabelecer a terapêutica clínica, restaurando o respeito à dignidade humana com práticas condizentes com a fisiopatologia melhor estudada e propiciando vida melhor.
Quando pararam por aqui em 1969 com o emprego do anticoagulante, de repente esqueceram-se que tínhamos permanecido na mesma posição e de que não aproveitamos o momento propício de decepção e silenciosa consternação para dar o troco e tripudiar sobre os desgostosos da época de sofrimento.
Nessa época permanecíamos ainda preocupados e procurando a explicação para o fracasso do anticoagulante. Os norte-americanos já haviam parado com o anticoagulante havia mais de 2 anos, enquanto aqui haviam continuado até terem certeza de que não haveria mais apelação.
Bibliografia: 1) Anticoagulante e enfarte miocárdico, Publicações médicas, 33:3, 1962
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