Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Memórias sobre nossa contribuição para o estudo dos bloqueios de ramo

 

Quintiliano H. de Mesquita

 

Desde os primórdios de nossa iniciação nos estudos da eletrocardiografia e particularmente dos bloqueios de ramo direito e esquerdo, surpreendíamo-nos com os registros de complexo QRS de duração normal mas com o padrão em ‘M’ nos pontos precordiais direitos (V4R, V3R e V10 bem como na derivação AVR, com deflexão S relativamente espessada em D1, aVL, V5 e V6, mostrando-se assim com padrões semelhantes do bloqueio de ramo direito completo, como miniatura desse padrão clássico; dando-nos a impressão de tratar-se de BRD com QRS de duração normal.

 

Aproveitando a feliz oportunidade da presença do Prof. Frank Norman Wilson entre nós, em 1942 (foto), o consultamos sobre a possibilidade do referido padrão representar BRD incompleto com QRS de duração normal como o 1º tipo de BRD, semelhante ao que acontecia com o PR longo no BAV parcial de 1º grau. O Professor Frank Wilson, que quando era consultado sobre certos aspectos eletrocardiográficos ainda não esclarecidos, sempre nos respondia com a simples expressão de que não sabia, disse-nos que parecia representar aquele aspecto que aduzíramos, mas afirmava decisivamente que até então nada autorizava tal interpretação.

 

Permanecemos pesquisando e quando tais padrões eram observados, fazíamos longos traçados eletrocardiográficos com a intenção de surpreender o milagre.

 

Assim, em 26 de novembro de 1946, ao examinarmos o padre Raymundo Moura, residente em Porto Alegre, de passagem por São Paulo veio ao nosso consultório e por muita sorte nossa ao tomarmos seu ECG com o aparelho Cambridge que tinha inscrição através de papel fotográfico, verificamos logo pela oscilação do fio de quartzo que o paciente apresentava variação na morfologia do complexo QRS partindo do normal ao complexo QRS de BRDC. Registramos traçados longos e contínuos que ao serem revelados mostraram-nos aspectos de bloqueio de ramo direito progressivo como fenômeno de Wenckebach a partir do complexo QRS de duração normal e em ‘M’ em V4R, seguido por complexo QRS entre 0,10 e 0,12 seg. como BRDI e terminando em BRDC > 0,12 seg., assumindo repetidos períodos de BRD tipo 3:2.

 

Foram notadas outras variações de BRD 2:1 – padrão de Brad com QRS normal alternando com BRDC; períodos de BRD progressivo 3:2 e também de períodos com 2 complexos QRS de duração normal seguido por padrão de BRDC como 3:2.

 

Esse caso foi registrado no momento preciso naquele paciente em trânsito que veio trazer-nos a evidência que aguardávamos desde 1941.

 

Na literatura tal aspecto não tinha sido até então interpretado como Bloqueio de ramo direito pelas referências recentes de Wilson e col. e de  Friedland, C e Sodi Pallares, D (Am Heart J, 1947;34:930). Nesta publicação Sodi Pallares e Friedland registraram tais aspectos de complexo QRS em ‘M’ em V1 com duração normal, como possível evidência de hipertrofia ventricular direita.

 

Assim, produzimos em 1948  nova classificação de BR incompleto:

  • Tipo 1a, com complexo QRS de duração normal <0,10 seg.;

  • Tipo 1b, com complexo QRS entre 0,10-0,12 seg.;

  • Tipo 2, com fenômeno de Wenckebach no ramo;

  • Tipo 3, com bloqueio de ramo intermitente

Na publicação desta classificação, note-se que incluímos a informação de que havia uma referência em livro do Pardee de 1941 a um caso estudado por Sherf, quanto ao fenômeno de Wenckebach no ramo direito registrado por nós, o qual não foi encontrado na literatura.

 

No ano seguinte (1949), Sodi Pallares lançou a 2ª edição do seu livro “Nuevas bases de la Eletrocardiografia” e verificamos que ele abandonara sua posição anterior (Friedland e Sodi Pallares, 1947) acerca do padrão de bloqueio de ramo direito com o complexo QRS de duração normal, adotando a nossa concepção e colocando nosso trabalho na Bibliografia e nada referindo sobre o seu trabalho anterior em colaboração com Friedland. Passou a considerar o padrão de BRDI, tipo 1a de nossa classificação sem qualquer comentário no texto de seu livro sobre a verdadeira origem daquela mudança de conceito.

 

Acreditava ele que a simples referência bibliográfica do nosso trabalho seria o suficientemente correto para deixar de referir a verdade dos fatos, quando teria a obrigação moral e por pura honestidade científica, a necessidade de reconhecer nossa prioridade absoluta, por simples ato de justiça e também registrar a sua tão rápida mudança de critério. Como se vê, trata-se de um fato grave de omissão de verdade histórica, sobre o direito da propriedade, empalmada com desairoso silêncio, praticado por um chefe de Escola que em nosso meio tinha dezenas de seguidores e cujo talento e inegáveis pesquisas de grande valor sempre exaltados por todos, não teria necessidade de praticar tal usurpação.

 

Fazemos tais reparos porque ao longo do tempo, os discípulos e seguidores locais de Sodi Pallares, alheios voluntária ou involuntariamente parecem acreditar que o conceito emitido por nós prioritariamente pertencia a seu maestro. Em trabalhos posteriores reclamamos dessa adoção gratuita com aspectos de usurpação de conceito.

 

Naquele mesmo ano de 1949, durante curso de eletrocardiografia ministrado em São Paulo, Sodi Pallares assombrara os participantes com a adoção do BR com QRS de duração normal, segundo afirmação feita a nós pelo colega Paulo Schlesinger que participava do curso e que pessoalmente assim se expressou: o homem é um monstro”! Faz diagnóstico de BR com QRS normal!...

Note-se que o nosso trabalho fora publicado nos Arq Bras Cardiol (1948).

 

Ao longo do tempo temos publicado casos de BRI tipo 2 com particularidades raras:  caso de bloqueio AV total com ritmo idioventricular de centros hisianos e sucessivas variações de condução em cada um dos 2 ramos: padrões de BRDC ou BREC com registros de desbloqueio gradual e espontâneo; bem como o desbloqueio de ramo esquerdo ou direito, pós-extrassistolico ventricular nodal AV ou atrial, por facilitação e efeito de Wedensky, com imediato retorno ao bloqueio progressivo de ramo.

 

Registramos em caso de Fibrilação atrial o bloqueio de ramo direito progressivo seguido por desbloqueio gradual como fenômenos espontâneos.

 

Como confirmação do Bloqueio de ramo esquerdo tipo 1a publicamos trabalho com casos de alternância em diferentes datas de BREC e do BREI tipo 1a (1984) conforme o modelo preconizado desde 1948.

 

Nossas publicações representaram uma inquestionável contribuição à literatura mundial e poucos trabalhos surgiram depois sobre o bloqueio de ramo com o fenômeno de Wenckeback, tipo 2 de nossa classificação (Vitolo E e Rossi L: Minerva Cardioang, 1961;9:254; Rosenbaum M et al: Circulation, 1969;40:79; Friedberg HD e Shamroth L: Am J Cardiol 24; 1969:24:561 além do inexplicável acontecimento com o nosso BRI do tipo 1a adotado por Sodi Pallares (1949).

 

Bibliografia:

1) Contribuição para o estudo dos bloqueios de ramo. Nova classificação, Arq. Bras Cardiol, 1948;1:75 e Rev Hospital N.S Aparecida, 1949. Republicado pela Sociedade Brasileira de Cardiologia em (Túnel do Tempo – Há 50 anos), 2002.

2) Bloqueio total auriculoventricular com ritmo idioventricular de centros hisianos e variações de condução nos dois ramos, Arq Bras Cardiol, 1958;11:143

3) Bloqueio incompleto de ramo, tipo 2, caracterizado por períodos de alargamento progressivo do complexo QRS, terminando em padrão de bloqueio completo, Arq Bras Cardiol, 1963;16:187

4) Bloqueio de ramo dependente de bradicardia, Arq Bras Cardiol, 1971;24:15

5) Facilitação e efeito de Wedensky durante bloqueio de ramo, Arq Bras Cardiol,

1971;24:41

6) Aspectos eletrocardiográficos da conversão de bloqueio de ramo esquerdo incompleto tipo 1a em bloqueio de ramo completo e vice-versa, Arq Bras Cardiol, 1984;42/2:133

 

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