Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio
Memórias sobre nossa contribuição para o estudo do enfarte do ventrículo direito
Em 1958, ao observarmos um caso de paciente portador de angina instável, havíamos registrado alterações do segmento RS-T e onda T, comuns nesses casos. Cerca de 10 dias após fomos atendê-la em seu domicilio, acometida por enfarte agudo do miocárdio e assumindo uma postura curiosíssima no leito; não suportava senão o decúbito lateral direito e tinha grande mal estar no decúbito dorsal. Para a tomada do ECG, a paciente mudava de postura para o decúbito dorsal a cada Derivação, alternando com o decúbito lateral direito exigido e bem suportado. Esta postura foi observada por mais de 15 dias.
O ECG mostrara padrão de 'rS' em V4R no ECG anterior ao enfarte e como decorrente deste passou a mostrar deflexão QS e onda T negativa, ao lado de deflexão QS em aVR; onda Q em D2, D3 e aVF recentes e não muito características, mas com segmento RS-T supradesnivelado e sem evolução de onda T para a negatividade e aspecto puramente coronário.
Nos pontos precordiais esquerdos a ausência de deflexão Q e, portanto, com aspecto semelhante ao de padrão de Bloqueio de ramo esquerdo incompleto tipo 1a que descrevemos prioritariamente em 1948, naquele trabalho em que mostramos a evolução diagnóstica dos bloqueios de ramo.
Este caso veio fortalecer um nosso trabalho de 1949, quando achávamos que V4R seria o marco inicial da pesquisa precordial do ventrículo direito.
Diante daqueles aspectos clínicos e eletrocardiográficos diferentes do que víramos até então, levantamos a possibilidade de tratar-se de enfarte do ventrículo direito.
Fomos à pesquisa eletrocardiográfica do passado e encontramos no trabalho experimental de Wilson e colegas, com a sua teoria cavitária que serviu de ensinamento aos cardiologistas a raciocinarem sobre a gênese das alterações eletrocardiográficas do complexo QRS em todas as condições clínicas e eletrocardiográficas.
Verificamos que a sua pesquisa experimental sobre enfarte de parede livre do ventrículo direito, ao invés de registrar na derivação epicárdica e torácica correspondente ao padrão eletrocardiográfico de deflexão 'rS' relativo ao potencial cavitário do ventrículo direito; ficou patente o padrão QS como ocorria no enfarte ventricular esquerdo.
O trabalho de Wilson e col., publicado 6 anos após aquela constatação (1938) inesperada, dava-nos a impressão de que por si só contraditava a teoria cavitária wilsoniana, porque no enfarte de parede livre do ventrículo direito provocado pelo próprio Wilson e col., sem qualquer participação do septo interventricular, o registro da deflexão QS no epicárdio do ventrículo direito era seguramente daquele local e sem qualquer influência da cavidade ventricular esquerda.
Não paramos aí, fomos atrás de outros trabalhos e chegamos ao trabalho experimental de Bakos (1950) que no processo isolado de ventrículo direito com destruição da parede por queimadura miocárdica, observara também deflexão QS sobre o ventrículo direito.
Naquele caso fizéramos o mapeamento eletrocardiográfico do tórax e registramos deflexão 'R' no hemitorax esquerdo e deflexões QS e QR no hemitorax direito: faces anterior, lateral e posterior; no rebordo costal direito não havia deflexão Q ou QS e sim 'rS', como na ponta do ensiforme e no rebordo costal esquerdo registramos deflexão 'R'.
Naquela ocasião os tratadistas não se aventuravam a falar sobre enfarte do ventrículo direito, à exceção de Sodi Pallares e Lenegre, cardiologistas com grande bagagem experimental, não tinham tido o necessário cuidado de perquirir sobre o passado recente e por isso não registraram os achados de Wilson e col. (1932-38), e Bakos (1950).
Daí, Sodi Pallares e Lenegre em seus magníficos tratados sobre eletrocardiografia, referindo-se ao possível quadro eletrocardiográfico de enfarte ventricular direito, dedutivamente, indicavam que se confundiria com o padrão normal 'rS' refletindo então o padrão cavitário.
Tais aspectos e em conseqüência do grande prestigio e notoriedade desses Autores envolvidos, têm realmente entravado o progresso diagnóstico eletrocardiográfico no tocante ao reconhecimento do enfarte ventricular direito e que permanece sem divulgação correta e necessária até hoje.
Naquele mesmo caso que sobreviveu a duras penas durante 3 anos, a incapacidade funcional e física pós-enfarte era impressionante, porque em repouso tudo ia bem, mas frente ao simples e pequeno esforço a dispnéia era enorme. Tínhamos a impressão de que durante o esforço, o ventrículo direito não fornecia sangue suficiente para o ventrículo esquerdo; lembrava-nos um automóvel Ford antigo, sem bomba de gasolina que, apesar do tanque de gasolina colocado sobre o motor, nas subidas de ladeiras íngremes não fornecia gasolina suficiente para o carburador e só subia de marcha ré.
Do exame radiográfico suspeitamos da possibilidade de aneurisma do ventrículo direito e como tínhamos participado daquela cirurgia do nosso paciente operado pelo Bailey, pedimos ao Prof. Eurico Bastos que fizesse uma pesquisa direta, preparado para realizar a aneurismectomia. Tudo foi realizado no Hospital Matarazzo, mas ao ser exposto o coração, verificamos que se tratava de aneurisma do átrio direito, mas mostrava a grosso modo sinais da cicatriz do enfarte na superfície epicárdica do ventrículo direito; ficou resolvida a preservação do aneurisma do átrio direito, porque do ponto de vista funcional não surtiria qualquer efeito benéfico.
Aproveitando a tentativa cirúrgica e exposição dos ventrículos, fizemos a captação de derivações eletrocardiográficas epicárdicas sobre os ventrículos direito e esquerdo e o registro da deflexão QS era legítimo e inquestionável sobre o ventrículo direito e o oposto era registrado sobre o ventrículo esquerdo com padrões 'R' e 'Rs'. Pela primeira vez era registrado o ECG epicardico do enfarte ventricular direito no ser humano, reproduzindo-se fielmente o achado eletrocardiográfico experimental de Wilson e col. e de Bakos, contrariando frontalmente a teoria cavitária de Wilson. Procuramos então justificar e explicar o padrão 'QS' epicárdico do enfarte ventricular direito, fora dos conceitos preconizados pela Teoria cavitária. Valemo-nos então dos trabalhos de Prinzmetal e col. sobre a gênese do complexo QRS; com eletrodo perfurante ele tinha registrado em ambos os ventrículos nas camadas subendocárdicas o padrão QS que ele denominava QS-mural, além do QS-cavitário do ventrículo esquerdo.
Assim, procurando uma explicação para o achado, sem qualquer pensamento contestatório à teoria cavitária de Wilson e col., aventamos a hipótese de se tratar pura e simplesmente do registro da deflexão QS-mural.
Devemos confessar que ao nos prepararmos para a apresentação do caso ao 16º Congresso da Sociedade Brasileira de Cardiologia (1959), tomamos o cuidado de nos comunicar com Myron Prinzmetal, dando-lhe conta sobre o nosso diagnóstico de enfarte ventricular direito e do nosso pensamento sobre a interpretação a base de sua deflexão QS-mural.
Tivemos o prazer de receber uma resposta dele cheia de entusiasmo pelos aspectos eletrocardiográficos do caso, ao mesmo tempo que nos felicitava pelo diagnóstico (Carta de Myron Prinzmetal).
A nossa fácil comunicação com Prinzmetal tinha origem desde a remessa que tínhamos feito em 1954 de 2 corações de portadores de miocardite chagásica e portadores da síndrome de Wolff-Parkinson-White. A nossa admiração quanto à figura de Prinzmetal, prendia-se às suas geniais pesquisas com muita criatividade e imaginação no trato das arritmias, quando demonstrou com a cinematografia ultra rápida, a teoria unitária das taquicardias atriais que nós endossamos na nossa monografia sobre Arritmias e diversas outras oportunidades. Aprendêramos ao longo de sua trajetória admirar e reconhecer seus criativos métodos de pesquisa.
Em 1963, publicamos mais 3 casos de enfarte agudo do miocárdio com óbitos e portadores daqueles padrões eletrocardiográficos.
Os 2 trabalhos não despertaram a atenção dos cardiologistas patrícios, uma vez que no plano nacional muitos serviços universitários tecnicamente bem equipados e com pletora de pacientes enfartados não registravam nada neste particular, tanto que em reunião anátomo-clínica do Serviço de Cardiologia do Hospital dos Servidores de São Paulo, quando sob a chefia de Dr. Marcos Fabio Lion diagnosticamos através do ECG a presença de enfarte isolado do ventrículo direito: Deflexão QS em V1 com RS-T e T (+) e deflexão R (ausência de Q) em V5 e V6 e segmento RS-T (-) em associação com o padrão de enfarte de parede inferior, tendo sido confirmado o diagnóstico pelo exame anátomo-patológico.
Em 1981, publicamos "Deflexão QS no enfarte do ventrículo direito: teoria cavitária e teoria vetorial. Relato de 2 casos". Tivera oportunidade de tratar 2 casos de enfarte do ventrículo direito, diagnosticados em vida e chegaram ao óbito, tendo sido retirados os corações. Enviamos ambos corações para exame histopatológico, tendo sido confirmados os diagnósticos de enfarte do ventrículo direito.
Em 1982, publicamos "Subsídios eletrocardiográficos para o diagnóstico do enfarte do ventrículo direito". Nos dois últimos trabalhos passamos a considerar a teoria vetorial como capaz de explicar a deflexão QS sobre o ventrículo direito enfartado e a deflexão R ampla e tardia à esquerda. Neste último trabalho procuramos demonstrar que a teoria vetorial se ajustava ao enfarte do ventrículo direito com os padrões recíprocos de QS à direita e R à esquerda do precórdio simulando bloqueio de ramo esquerdo, tipo 1a de nossa classificação (1948). Foram apresentados 3 tipos de enfarte inferolateral: com 'rS' à direita e QRS à esquerda; 'R' à direita e 'QR' à esquerda e o outro tipo com 'QS' à direita e 'QR' à esquerda no qual deveria haver a associação de enfartes dos ventrículos direito e esquerdo.
Indicávamos ainda o enfarte inferoseptal de Horan e Flowers como indício de enfartes dos VE + VD. Em todos os casos de enfarte do ventrículo direito as Derivações V4R, V5R e V6R eram bem características, com deflexão 'QS'. No penúltimo trabalho tínhamos mostrado que os padrões frontais de enfarte 'QS' tinham correspondência recíproca de 'R' larga e tardia em V5 e V6, semelhante ao padrão registrado no bloqueio de ramo esquerdo incompleto tipo 1a.
Em 1985, publicamos trabalho onde foi mostrada uma avaliação de 1139 portadores de enfarte agudo do miocárdio, estudados eletrocardiograficamente com a tomada rotineira da derivação precordial direita V4R (sendo 86 pacientes com V4R, V5R, V6R).
Entre os 1139 pacientes, 402 (35,3%) apresentaram deflexão QS em V4R – evidência de enfarte do ventrículo direito. Era registrada a deflexão QS em combinação com o padrão periférico de enfarte da parede inferior em 38,2% (230/601 pts.) e da parede anterior em 31,9% (172/538 pts).
Neste trabalho, em consonância com a nova tendência cardiológica de valorização diagnóstica do enfarte do ventrículo direito, foi apresentada a proposta de nova e simplificada classificação eletrocardiográfica para enfarte agudo do miocárdio transmural, representada pelos 3 tipos seguintes:
1 – Enfarte do ventrículo esquerdo, isolado: padrões primários de enfarte em 1 ou mais das Derivações V1-V6, em combinação com o padrão periférico de enfarte da parede anterior ou da parede inferior, mas com as Derivações V4R, V5R, V6R normais ou sede de padrões secundários (737 pts,.64,7%).
2 – Enfarte do ventrículo direito, isolado ou associado a enfarte de ventrículo esquerdo inaparente: padrões primários de enfarte em 1 ou mais das derivações V4R, V5R, V6R e até em V1, em combinação com o padrão periférico de enfarte inferior, com V1-V6 normais ou sede de padrões secundários de enfarte em V5 e V6 (91 pts., 8%).
3 – Associação de enfartes de ventrículos direito e esquerdo: padrões primários de enfarte em Derivações das áreas ventriculares esquerda (V1-V6) e direita (V4R-V6R), simultaneamente, em combinação com o padrão periférico de enfarte da parede inferior ou anterior (311 pts., 27,3%).
Nesta classificação o diagnóstico tem especificas implicações fisiopatológicas, terapêuticas e prognósticas.
Em artigos publicados em 1995 analisamos a evolução histórica e crítica do eletrocardiograma do infarto ventricular direito através da contribuição de diversos autores, demonstrando-se a falta de sustentação experimental da teoria cavitária, e defendendo-se uma classificação eletrocardiográfica simplificada do enfarte agudo do miocárdio.
A partir da década de 80 verificamos que os padrões de enfarte do ventrículo direito isolado descritos desde o nosso 1º trabalho (1960) foram redescobertos por vários autores estrangeiros e até nacionais apontados por nós nos últimos trabalhos publicados (1985, 1995).
Bibliografia: 1) Pesquisa eletrocardiográfica do ventrículo direito, Rev Hospital N.S. Aparecida, 1949;2:52 2) Contribuição para o estudo do enfarte do ventrículo direito, Arq Bras Cardiol, 1960;13:162 3) Aspectos eletrocardiográficos do enfarte do ventrículo direito, Arq Bras Cardiol, 1963;16:113 4) Deflexão QS no enfarte do ventrículo direito: Teoria Vetorial versus Teoria Cavitária. Relato de 2 casos, Arq Bras Cardiol, 1981;36/2:125 5) Subsídios eletrocardiográficos para o diagnostico de enfarte do ventrículo direito, Arq Bras Cardiol, 1982;39/13:177 6) Nova e Simplificada Classificação eletrocardiográfica do enfarte agudo do miocárdio, Revista Bras Med (Cardiologia), 1985;4:34, Mesquita QHde e Baptista CAS 7) Eletrocardiograma do Infarto ventricular direito. Evolução histórica e crítica, Ars Curandi, 1995;28:12-44, Mesquita QHde e Baptista CAS 8) Infarto agudo do miocárdio, Nova e simplificada classificação eletrocardiográfica, Ars Curandi (Cardiologia), 1995;17:4-18, Mesquita QHde e Baptista CAS
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