Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio
Miocardiopatia Isquêmica
Quintiliano H. de Mesquita, Cardiologista
Da experimentação em animal, importantes subsídios têm sido acumulados nos últimos tempos acerca da isquemia miocárdica produzida em coração normal, suas conseqüências, recuperação miocárdica e efeitos da reperfusão miocárdica.
Como efeito imediato da isquemia miocárdica ventricular, registrado dentro de poucos segundos, é a perda da contratilidade miocárdica regional ou anulação da motilidade miocárdica, abaulamento regional na parede ventricular e até motilidade paradoxal da região isquêmica.
Tem sido constatada a possibilidade de recuperação miocárdica da região submetida a isquemia, em função da duração do ato que desenvolve a isquemia e a reperfusão miocárdica mais ou menos precoce. Conforme o tempo do inicio da reperfusão e sua relação com a duração da isquemia imposta, são registradas nas breves isquemias alterações químicas no miocárdio afetado ou assim agredido, com possibilidade de restauração completa sob reperfusão miocárdica; enquanto que, sob isquemias mais duradouras, podem surgir lesões estruturais de vários graus, reversíveis ou irreversíveis ao longo do tempo pós-restabelecimento da perfusão sanguínea miocárdica. É de se notar que em muitos experimentos a reperfusão miocárdica é responsável pela aceleração do processo necrótico. Assim, o que teoricamente poderia restabelecer a estrutura miocárdica e função ventricular pela reperfusão miocárdica, serviria como o elemento de agravamento do miocárdio isquêmico evolvente para o processo necrótico definitivo. De tais efeitos nocivos da duração do processo isquêmico e restabelecimento da perfusão miocárdica em área ventricular submetida a duradoura isquemia, o miocárdio pode se mostrar posteriormente incapaz de ser reperfundido, portanto sem poder receber os benéficos efeitos do sangue novo com os elementos energéticos e de nutrição, transformada essa região em porção miocárdica indiferente às trocas metabólicas.
Curiosamente, o socorro esperado pela reperfusão miocárdica apresenta-se como o acelerador do desastre necrótico e tem sido verificado até que a reoxigenação e infusão de elementos energéticos e nutritivos tem efeito paradoxal e acarretam a aceleração para a necrose miocárdica.
Como se vê, as implicações clínicas de tais observações levam necessariamente ao consenso de que os processos isquêmicos agudos deixam sempre a sua marca estrutural e os processos crônicos repetitivos são marcados por alteração estrutural que irá se acentuando cada vez mais para caracterizar finalmente a transformação tissular das regiões submetidas aos constantes efeitos da isquemia clinicamente desenvolvida na vida diária, independente até da boa qualidade do sangue circulante quanto aos elementos energéticos e de nutrição, mas conseqüente à quantidade de suprimento pelo fluxo coronário. Daí dever-se esperar que o processo de aterosclerose coronária desenvolva - na região miocárdica diretamente dependente - crescentes alterações estruturais miocárdicas regionais decorrentes dos surtos isquêmicos repetitivos da vida de cada um, para constituir-se como o processo de miocardiopatia isquêmica que repercutirá certamente sobre a função ventricular como o todo e o processo miocárdico regional comprometido cronicamente pela isquemia, assumindo então aspectos de regiões miocárdicas com relativa deficiência contrátil, sempre acentuadas durante cada processo isquêmico recidivante.
Como se transforma o miocárdio normal frente ao processo obstrutivo coronário?
As artérias coronárias epicárdicas mais calibrosas podem ser acometidas por aterosclerose global e simultaneamente ou mostrarem-se comprometidas de maneira isolada uma ou duas coronárias lesadas ou uma ou duas coronárias livres de comprometimento. A artéria coronária angiograficamente normal indica apenas que está pérvia e sem estrangulamentos, enquanto pode estar estruturalmente afetada em toda a sua extensão e comprometida em sua elasticidade. A artéria coronária apresentando estrangulamento mostra-se severamente afetada em todo seu percurso e com obstruções mais pronunciadas proximal ou distalmente.
Dos seus efeitos sobre o miocárdio ventricular, dependente de cada ramo coronário, ocorre a geração de alterações estruturais dependentes também da própria resistência miocárdica frente às diuturnas manifestações de insuficiência coronária relativa. A parede ventricular com regiões dependentes de cada segmento coronário extramural vai sofrendo transformações estruturais progressivas, bem caracterizadas pela perda da nobreza tissular e desenvolvimento de áreas fibróticas não homogêneas em mistura com áreas de tecido normal. Cada esforço físico capaz de desenvolver o desequilíbrio entre o suprimento sangüíneo e a demanda de maior exigência de nutrição e oxigênio, produz insuficiência coronária relativa e o fenômeno isquêmico miocárdico, caracterizado pela perda de contratilidade regional, redução dos elementos energéticos e de nutrição caracterizando nítida alteração metabólica, só reparada após a cessação do processo isquêmico, quando ocorre a lavagem tissular pelo fluxo sangüíneo, em condições favoráveis de repouso com nutrição plena.
Na vida de cada um o fenômeno isquêmico é repetitivo e dependente do tipo de vida, sua intensidade e sua exposição freqüente a causas estressantes, presença de fatores de risco e principalmente da condição individual de registrar ou não o fenômeno isquêmico através de manifestação dolorosa precordial.
O que ocorre no miocárdio dos portadores de angina do peito estável sem enfarte prévio ou na coronariopatia assintomática?
O miocárdio ventricular a partir do momento em que passa a ser submetido a intermitentes e recorrentes episódios de insuficiência coronária relativa por esforço ou emoções, dá lugar a transformações específicas do miocárdio, caracterizando regiões dependentes da coronária afetada em seu suprimento e portanto com déficit frente à demanda miocárdica.
Em recente e primoroso trabalho Hess e col. verificaram através de estudos hemodinâmicos, ecocardiográficos e biópsias ventriculares, aspectos muito curiosos em portadores de angina do peito sem enfarte, em repouso e durante isquemia miocárdica provocada por esforço, principalmente no tocante a manifestações funcionais comprometendo a função ventricular durante a isquemia e as lesões estruturais encontradas nas regiões miocárdicas afetadas, no curso dos casos cronicamente submetidos a repetitivos episódios de insuficiência coronária relativa decorrentes do regime de vida de cada um.
Observando os efeitos agudos da isquemia miocárdica sobre a função ventricular esquerda, notaram precocemente a diminuição da função sistólica ventricular esquerda e o aumento na pressão de enchimento diastólico ventricular esquerdo, aspectos esses reversíveis dentro de poucos minutos após a cessação da isquemia miocárdica.
Deve ser registrado que pouco se sabe acerca das alterações estruturais nas regiões ventriculares esquerdas com isquemia miocárdica recorrente em pacientes com angina do peito sem enfarte miocárdico prévio. Placas de fibrose miocárdica têm sido referidas ocorrendo em pacientes com coronariopatia, mesmo sem regiões miocárdicas hipocinéticas em condições de repouso por Flameng e col., Ideker e col. e Bodenheimer e col..
Hess e colegas retiraram amostras de tecido ventricular de regiões hipocinéticas coincidentes ou correspondentes com o vaso coronário mais criticamente estenótico e também de regiões normocinéticas sempre normalmente perfundidas durante o exercício.
As regiões hipocinéticas e normocinéticas mostraram motilidade com diferenças distintas durante o esforço. Nas biópsias as regiões hipocinéticas mostraram tecido intersticial não muscular aumentado e vacúolos perinucleares, indício de dano miocárdico.
Dos registros hemodinâmicos durante o exercício, destacaram ainda aumento da freqüência cardíaca e da pressão final diastólica do ventrículo esquerdo, ligeiro aumento do pico da pressão arterial sistólica, diminuição da fração de ejeção (63/54%) e aumento do volume final diastólico; as regiões normocinéticas e hipocinéticas tinham motilidade normal em repouso e diminuição da motilidade nas regiões hipocinéticas durante o esforço.
Hipertrofia nas regiões normocinéticas e hipocinéticas mostrava-se com fibra de maior diâmetro na região hipocinetica, bem como o tecido não muscular intersticial, presente em ambas as regiões era no entanto mais acentuada nas regiões hipocinéticas. A parte endocárdica é mais espessa que a parte epicárdica.
Na região normocinética o tecido não muscular intersticial não é diferente nas partes endocárdica e epicárdica; entretanto, na região hipocinética esse tecido é mais acentuado no endocárdio. A fibrose intersticial era também significativamente mais pronunciada nas camadas endocárdicas das regiões hipocinéticas que nas normocinéticas ventriculares esquerdas. Ademais, as análises qualitativas mostraram vacúolos perinucleares nas camadas endocárdicas das regiões hipocinéticas. Vacúolos perinucleares são vistos nas camadas subendocárdicas do miocárdio transitoriamente isquêmico e não foram observados nos segmentos não isquêmicos.
As regiões miocárdicas que sofrem diretamente os efeitos isquêmicos contrastam com as regiões miocárdicas não isquêmicas e funcionalmente são bem diferentes durante episódios isquêmicos. Assim é que a região isquêmica durante o episódio isquêmico perde a motilidade, fica abaulada para fora, enquanto as regiões não isquêmicas reagem diferentemente, tornam-se hipercontráteis ou com motilidade mais pronunciada, assumindo características de reação compensatória em substituição a região comprometida, procurando garantir o débito cardíaco; representando ao mesmo tempo um confronto físico entre as duas regiões e aumentando até a distensão da parede sem motilidade, agravando assim a região ventricular isquêmica que se mostra responsável pela queda do volume de ejeção ventricular, aumento do volume final diastólico e da pressão final diastólica e diminuição da pressão final sistólica, comprometendo assim a função ventricular esquerda.
Nos episódios de isquemia miocárdica regional e conseqüente perda da contratilidade miocárdica, ocorre estase circulatória regional e na artéria coronária satélite pode-se registrar também uma manifesta agregação plaquetária que desaparece com a cessação do processo isquêmico e seus efeitos, ocorrendo reversibilidade contrátil do miocárdio e restauração do fluxo coronário. Tudo isso é iniciado com a produção da isquemia miocárdica regional pelo esforço físico, responsável pelo desequilíbrio entre o fluxo coronário limitado e fixo e a demanda miocárdica aumentada.
Através da ecocardiografia, verifica-se que a crise de angina do peito desenvolve perda da motilidade regional - falência contrátil - e exaltação de outras regiões miocárdicas não isquêmicas, caracterizando o confronto entre o miocárdio isquêmico e o não isquêmico. Tal registro serve para identificar também o fim do processo isquêmico com o retorno das duas regiões a motilidade normal fora do episódio isquêmico. Daí, é natural que se admita a isquemia miocárdica primária desencadeando a perda de contratilidade miocárdica regional e suas conseqüências hemodinâmicas, com o retorno a normalidade funcional após a isquemia. Essas alterações registradas pela ecocardiografia durante o episódio isquêmico põem em relevo o confronto entre o normal e patológico na parede ventricular esquerda, guardando no entanto uma certa harmonia funcional em condições de repouso e muito diferente daquela condição registrada durante o esforço físico, em que é notória a desarmonia patológica. Este exemplo configuraria a lesão de uma artéria coronária frente às demais normais. Quando duas ou três coronárias se acham estenóticas, os episódios isquêmicos desenvolvidos apresentam uma certa concordância nos efeitos ventriculares e então praticamente não há confronto devido a relativa harmonia patológica das regiões ventriculares comprometidas, sofrendo os mesmos efeitos de redução de contratilidade em maior extensão, ocorrendo a generalização da disfunção ventricular com maior expressão hemodinâmica, possivelmente suportada e contornada de maneira mais harmoniosa pela ausência de regiões em confronto.
Isso acontece na angina estável em que o processo isquêmico tem relação com o esforço e tensão psicoemocional, representando um longo período da coronariopatia em que, segundo nos parece, o miocárdio submetido as freqüentes isquemias ainda se apresenta em condições estruturais e funcionais satisfatórias em repouso e fora dos episódios sintomáticos.
O miocárdio ventricular sob a ação de manifestações isquêmicas em cada região miocárdica dependente de cada uma das três maiores artérias coronárias epicárdicas - direita, circunflexa e descendente anterior esquerda - vai progressivamente se deteriorando, segundo o grau de cada lesão estenótica coronária, assumindo assim o espectro variável de cada região miocárdica em seu comprometimento estrutural.
Assim, as paredes ventriculares podem mostrar-se com lesões estruturais em graus diversos, de acordo com a idade de cada lesão arterial coronária estenótica significante (maior que 50%) ou insignificante (menor que 50%); sendo muito importante a peculiaridade individual de miocárdio mais ou menos resistente aos processos isquêmicos repetitivos e seus efeitos para a degradação miocárdica, nem sempre em função do grau ou severidade das lesões estenóticas coronárias sobre a parede ventricular dependente e a função ventricular.
Assim, a miocardiopatia isquêmica vai se instalando ao longo do tempo e só começa a constituir-se como elemento de grande risco quando severamente desenvolvida e comprometendo a condição miocárdica contrátil, já em repouso, coincidente com os avançados estágios da angina instável, do pré-enfarte e do enfarte miocárdico. Esse grau de evolução é bem marcado por severo comprometimento da função ventricular em repouso, após esforço físico, pela interação de medicamentos de efeitos antagônicos e por excessiva carga de dilatadores coronários.
Tem-se a impressão de que as grandes complicações da doença coronária crônica - angina instável, enfarte miocárdico, insuficiência cardíaca e graves arritmias ventriculares com morte súbita ocorrem quando o processo de miocardiopatia isquêmica se acha bem definido, isto é, quando o processo isquêmico que, a princípio só era desencadeado por esforço ou emoção, passa a ser conseqüência de episódios transitórios de falência miocárdica regional - perda de contratilidade - estase circulatória, agregação plaquetária e manifestações vasospásticas secundárias, chegando a confundir a causa primária de desencadeamento do processo isquêmico silencioso ou sintomático. Isso pode ocorrer de maneira ainda reversível ou então perpetuar-se e chegar a necrose aguda pela irreversibilidade dos episódios inicialmente reversíveis, registrados como angina instável e que evolui freqüentemente para a instalação do enfarte agudo.
Em suma, o processo da miocardiopatia isquêmica deve chamar a si toda a atenção durante o seguimento dos portadores de coronariopatia crônica, uma vez que as complicações são decorrentes do próprio estado do miocárdio, enquanto na atualidade se registra preocupação quase que exclusiva com a condição estrutural das artérias coronárias, que tem merecido o cuidado especial com a prática de assegurar-se o melhor prognóstico, através da cirurgia eletiva da revascularização miocárdica ou angioplastia coronária pelo balão. Entretanto, freqüentemente, tais manobras são levadas a cabo quando o processo de miocardiopatia isquêmica já é avançado e por isso mesmo sem as condições ideais de reperfusão miocárdica que deveriam garantir os melhores efeitos. Nos últimos tempos tem-se concluído que os êxitos prognósticos tem sido decorrentes mais do estado da função ventricular que das condições inerentes ao estado anatômico das artérias coronárias, mesmo transformadas cirurgicamente ou por dilatação com o balão intracoronário. Apesar de tudo, abandona-se o miocárdio isquêmico, deficiente contrátil, e cuida-se com exclusividade das artérias coronárias estenóticas, quando as complicações que se registram dependem principalmente das condições intrínsecas do miocárdio e especialmente da função ventricular que deve ser preservada, a nosso ver, com a imprescindível participação do cardiotônico como terapêutica anti-enfarte imediata na angina instável e a longo prazo em todas as situações da coronariopatia estável com ou sem enfarte prévio, porque acreditamos que o enfarte tem no mecanismo miogênico a expressão fisiopatológica da falência miocárdica regional, como a insuficiência cardíaca na coronariopatia crônica decorre do extenso comprometimento de cerca de 30% da área ventricular esquerda.
Assim, configura-se a importância das conseqüências miocárdicas propriamente ditas sobre a do processo estenótico arterial coronário e sua evolução obstrutiva, exigindo essencialmente a condição de preservação da contratilidade nas regiões miocárdicas ventriculares causadoras da disfunção ventricular, reconhecida na vigência da miocardiopatia isquêmica, uma vez que a contratilidade miocárdica representa a propriedade mais importante do coração, na prevenção das complicações da coronariopatia crônica.
Portanto, na miocardiopatia isquêmica crônica, reputamos o cardiotônico como o agente terapêutico imprescindível na prevenção do enfarte miocárdico, insuficiência cardíaca e morte súbita, ao lado dos cuidados para a eliminação ou minimização dos fatores de risco como diabetes melitus, hipertensão arterial, obesidade, estresse psicoemocional e infecção das vias aéreas superiores, porque o coração nessa condição se apresenta vulnerável, principalmente quando a disfunção ventricular é patente.
Nota: Este artigo foi extraído de capítulo com o mesmo título do livro "Como escapar da ponte de safena e do enfarte do miocárdio só com remédio", Mesquita, QHde: Editora Ícone, 1991 cujo resumo pode ser visto em http://www.infarctcombat.org/livros/icem.html
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