Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio

 


 

Aspirina na Prevenção do Enfarte (Infarto). Os Eventuais Benefícios Superam os Riscos Potenciais?

 

“Para algumas pessoas pode ser mais apropriado comer uma maçã do que tomar uma aspirina por dia”, Martin R Tramér em editorial no BMJ (1)

 

Estudo publicado no British Medical Journal (2), que teve o objetivo de determinar quais grupos de pacientes podem  obter um particular benefício ou experimentar prejuízo no uso de aspirina em baixas doses para a prevenção primária da doença coronária (aquela realizada em pessoas sem doença cardiovascular prévia), mereceu a seguinte reportagem do Jornal O Estado de São Paulo de 30 de junho de 2000:

 

Uso de Aspirina contra enfarte é contestado 

Estudo indica que benefícios são modestos e há riscos de hemorragia em hipertensos

 

Londres –  O consumo de pequenas doses de aspirina para diminuir o risco de ataque do coração ou derrame pode ter mais efeitos negativos do que positivos em algumas pessoas, segundo um grupo de pesquisadores britânicos. Eles concluíram que uma dose diária da substância era benéfica para homens com pressão baixa, mas ampliava a possibilidade de hemorragias entre hipertensos.

“Homens com níveis mais elevados de pressão podem ficar expostos a maiores riscos de hemorragia, sem obter vantagens em termos de redução em doenças coronarianas e derrames”, alertou Tom Meade, professor do Instituto Wolfson de Medicina Preventiva em Londres, num estudo publicado no British Medical Journal.

Para avaliar os efeitos da aspirina, uma equipe do Instituto estudou 5.500 homens entre 45 e 69 anos, durante um período de 7 anos. Todos os pesquisados apresentavam um risco crescente de doenças cardíacas, mas ainda não haviam tido enfartes ou derrames.

Os especialistas aconselhavam os pesquisados que tomavam aspirina a continuar a fazê-lo, mas advertiam que os resultados eram modestos mesmo para os homens com pressão baixa.

O estudo constatou também que, entre aqueles com pressão superior a 14,5 Hg., o consumo cotidiano de uma dose de apenas 75 miligramas causa um risco maior de hemorragias.

“Embora a aspirina realmente reduza a possibilidade de um enfarte, o efeito não é muito grande. E até doses pequenas podem provocar hemorragias, que muitas vezes são perigosas; por isso, a droga não deveria ser utilizada por pessoas que não seriam beneficiadas com seu consumo”, ressaltou Meade.

“Essa pesquisa mostra que não se pode concluir que, apenas porque uma droga tem um dado efeito num grupo de pessoas, outras terão o mesmo benefício”, ressaltou o diretor médico da British Heart Foundation, Charles George. (Reuters e Ansa)”

 

A controvérsia quanto ao emprego da aspirina na prevenção primária do enfarte do miocárdio ocorre desde o final dos anos 80.

 

A Força Tarefa do Serviço de Prevenção ligada ao Instituto Nacional de Saúde dos EUA dava a seguinte declaração em seu Guia para os Serviços Clínicos de Prevenção em 1995:

“Não existe evidência suficiente para recomendar contra ou a favor a profilaxia de rotina através da aspirina para a prevenção primária do enfarte do miocárdio. Embora a aspirina reduza o risco de enfarte do miocárdio em homens com idade de 40-84 anos, seu uso é associado a importantes efeitos adversos e o balanço de benefícios é incerto. Se a profilaxia através da aspirina for considerada, clínicos e pacientes devem discutir os benefícios potenciais e riscos para o individuo antes de começar seu uso”.

 

Na discussão sobre a eficácia da aspirina na prevenção do enfarte (3), quando consideravam os resultados de 2 largos testes realizados e publicados na mesma época (1988/1989), respectivamente nos EUA (4) e na Inglaterra, esta Força Tarefa não deu o mesmo valor aos testes feitos pelos ingleses que, bem ao contrário dos americanos, não encontraram mudança significativa na incidência de enfarte (1% de aumento) ou na mortalidade cardiovascular total (6% de redução).

 

A Força Tarefa americana admitiu, entretanto, que os benefícios conseguidos com os testes realizados nos EUA foram demonstrados em uma população selecionada: médicos entre 40-84 anos, com excepcional boa saúde, e que foram pré-checados para eliminar pessoas incapazes de tolerar aspirina. Também, que não houve benefício na mortalidade cardiovascular total porque a redução na freqüência de enfarte agudo fatal foi compensada por um aumento da freqüência de morte súbita. Em ambos os trabalhos houve complicações significativas, incluindo úlceras duodenais e sangramento gastrointestinal nos tratados com aspirina. Além disso, tanto no teste americano como no inglês os derrames eram mais comuns nos homens tomando aspirina sendo que a consistência nos achados sugeria uma relação entre o uso da aspirina e hemorragia cerebral, e o uso prolongado da aspirina podendo causar ainda dores estomacais, queimação, náusea, constipação e gastrite.

 

Meta-análise de testes aleatórios de aspirina na prevenção primária, realizada no Reino Unido (5), envolveu 4 estudos com 48.500 pessoas, sendo que a 25.000 foram dadas de 75-500 mg. de aspirina diariamente de 3.8 a 6.8 anos. Estes estudos deram informações sobre o número total de eventos cardiovasculares, enfarte do miocárdio, derrame, complicações hemorrágicas e mortalidade por todas as causas. Nela, os autores calcularam o benefício líquido pelo número de enfartes do miocárdio prevenidos e o número de eventos hemorrágicos em diferentes níveis de risco na linha base para eventos cardíacos. Isto foi feito na base de 100 pacientes tratados em 5 anos com dosagem baixa de aspirina em níveis anuais de 0,5%, 1,0% e 1,5% ao ano. A hipótese foi de que a aspirina em baixa dosagem reduziria o risco relativo por volta de 30%, mas o risco de sangramento permaneceu constante. Eles também deram o número de pacientes necessários para serem tratados com dosagem baixa de aspirina, no período de 5 anos, de forma a prevenir um evento coronário.

a) No caso do nível de risco de 0,5% de eventos coronários ao ano foi necessário tratar 133 pacientes para prevenir 1 enfarte do miocárdio.

b) No caso do nível de risco de 1,0% de eventos coronários ao ano foi necessário tratar 67 pacientes para prevenir 1 enfarte do miocárdio.

c) No caso do nível de risco de 1,5% de eventos coronários ao ano foi necessário tratar 44 pacientes para prevenir 1 enfarte do miocárdio.

 A conclusão dos autores da meta-análise foi de que a aspirina na prevenção primária é segura e valiosa em um risco coronário de 1,5% ao ano, e arriscada em um risco coronário de 0,5% ao ano. Também não foi observada uma redução significativa na mortalidade por todas as causas. 

 

John Cleland (6), colocando em debate uma meta-análise publicada na mesma edição do British Medical Journal (7), diz que a efetividade e a segurança da aspirina foram supervalorizadas. Ele argumenta que a aspirina pode mudar a forma de como os eventos vasculares se apresentam, ao invés de preveni-los, e que isto pode levar a uma redução cosmética dos eventos não fatais e um aumento na morte súbita. Dados sobre segurança e custo-benefício da aspirina são inadequados, e advoga que o uso da aspirina na prevenção de eventos ateroscleróticos pode desviar a atenção de outros remédios mais efetivos. Diz que a meta-análise contém uma série de defeitos. Desde que o benefício do tratamento com agentes antiplaquetas é pequeno, estes defeitos podem levar a conclusões errôneas. Segundo ele é extraordinária e significativa a raridade nos testes de agentes antiplaquetas, do alcance no benefício em seu objetivo primário. Para ele, a escolha do objetivo primário pelo grupo dos Antithrombotic Trialists é arbitrária e suspeita. Os agentes antiplaquetas parecem ser substancialmente mais efetivos em reduzir a incidência de eventos não fatais do que na redução do óbito. Também que nos testes realizados no longo prazo após enfarte do miocárdio, não existe evidência de que a aspirina salva vidas.   

 

A resistência à aspirina pode estar também associada a um risco aumentado de óbito em pacientes com doença cardíaca. Isto foi mostrado por Eikelboom e colegas que medindo concentrações de thromboxane em amostras de urina em um subgrupo de 976 pessoas sob o uso contínuo da aspirina, e que participaram do estudo Heart Outcomes Prevention Evaluation (HOPE). Deste grupo, 488 pacientes que tiveram enfarte do miocárdio ou derrame ou morreram de causas cardiovasculares, foram equiparados no seguimento de 5 anos com 488 pacientes que não tiveram eventos cardiovasculares. Após o ajuste para diferenças na linha base, os pacientes no mais alto quartil de excreção de thromboxane tiveram um risco aumentado de óbito cardiovascular de 3.5 vezes e de enfarte do miocárdio de 2 vezes, comparativamente ao quartil mais baixo (8).

 

Eric Topol, da Cleveland Clinic Foundation, comentando a respeito do artigo de Eikelboom e col. diz que “A resistência a aspirina emergiu como um excepcional e importante questão” “e este trabalho corrobora e estende nosso estudo sobre a história natural da resistência a aspirina, sobre o qual relatamos no encontro do American College of Cardiology [Atlanta, GA, USA; March 17-20]. Neste estudo Topol e colaboradores acharam uma significante correlação entre a resistência a aspirina medida por agregação de plaquetas e o composto de conseqüência principal de óbito, enfarte do miocárdio ou acidente cerebral em pacientes com doença cardiovascular estável (9).

 

Hayden e colegas conduziram uma meta-análise para examinar os benefícios da aspirina como agente de prevenção primária da doença cardiovascular. Para isto, tomaram dados de 5 testes randomizados e que foram publicados entre 1966 e 2001 (usaram o MEDLINE como fonte dos dados). Os 5 testes analisados incluíam um total de mais de 50.000 pacientes sem doença coronária prévia, a maioria de homens de meia idade. Os autores encontraram, neste estudo, que para cada 1000 pacientes com um risco de 5% de doença arterial coronária, a aspirina em baixa dosagem preveniria de 6 a 20 enfartes (média de 1,4% do total de pacientes), mas causaria de 0 a 2 derrames e 2 a 4 eventos de hemorragia gastrointestinal. Em pacientes com risco de 1% de doença cardiovascular em 5 anos a aspirina preveniria de 1 a 4 enfartes do miocárdio mas causaria até 2 derrames  e de 2 a 4 eventos de hemorragia intestinal. Notaram ainda que a mortalidade por todas as causas não foi significativamente afetada (10).  Os resultados desta meta-análise, incluindo todos os principais testes da aspirina como um agente na prevenção primária resultou em uma nova recomendação pela Força Tarefa de Serviços de Prevenção dos EUA (11).

 

O uso da aspirina para prevenção de re-enfarte também tem apresentado resultados bastante modestos. O estudo ISIS-2 de terapia antiplaquetas no curto prazo, no qual 17.187 pacientes com suspeita de enfarte do miocárdio foram reunidos de forma aleatória, metade tomando aspirina e metade tomando placebo mostrou uma redução em todas as causas de mortalidade, em cinco semanas, de 9.4% 811/897) para aspirina versus 12% (1030/8600) para placebo, representando uma redução no risco absoluto de mortalidade de apenas 2,6% (12). Outros testes de longo prazo usando a terapia de aspirina após o enfarte do miocárdio mostram que não houve efeito na mortalidade. Ao contrário os testes relataram um aumento de morte súbita.

 

Estudo apresentado no CHEST/93, mostra que a parada da aspirina expõe os pacientes cardíacos ao risco de angina instável ou enfarte. Na avaliação de um grupo de 1236 pacientes hospitalizados com síndromes coronárias, 51 deles tiveram eventos coronários agudos, do tipo angina instável ou enfarte, dentro de uma semana após a retirada da aspirina, representando uma incidência de 4.1% de todos os pacientes internados por eventos coronários (13).

 

Como parte do Women's Health Study pesquisadores testaram a aspirina na prevenção primária durante 10 anos em quase 40.000 mulheres. O estudo mostrou que a aspirina não reduziu o risco do enfarte agudo do miocárdio ou óbito cardiovascular nessas mulheres, Entretanto, aquelas tomando aspirina tiveram uma possibilidade 40% maior de desenvolverem hemorragias gastro-intestinais (14).

 

Outro estudo, investigando o uso em rotina com baixa dosagem de aspirina em 10.000 homens e 10.000 mulheres, sem doença cardiovascular, e idade superior a 70 anos, verificou que qualquer que seja o benefício que esse tratamento possa trazer é contrabalançado por eventos adversos, entre eles hemorragia gastrointestinal e intracranial (15).

 

Assim, cabe a seguinte pergunta:

Será que os benefícios eventuais conseguidos com a aspirina na prevenção do enfarte superam os riscos potenciais...?  

 

Bibliografia

1.  Aspirin, like all other drugs, is a poison. Tramér MR BMJ 2000;321:1170-1171 (November)

2. Determination of who may derive most benefit from aspirin in primary prevention: subgroup results from a randomized controlled trial. T W Meade, P J Brennan, on behalf of the MRC General Practice Research Framework, BMJ 2000;321:13-17      

3. Guide to Clinical Preventive Services (69. Aspirin Prophylaxis for the Primary Prevention of Myocardial Infarction), U. S. Preventive Task Force, Washington, DC: Office of Disease Prevention and Health Promotion, 1995

4. Final report on the aspirin component of the ongoing Physicians` Health Study. Steering Committee of the Physicians`Health Study Research Group. NEJM, 1989;321:129-135

4. Aspirin for primary prevention of coronary heart disease: safety and absolute benefit related to coronary risk derived from meta-analysis of randomized trials. Sanmuganathan PS, Ghahramani P, Jackson PR, Wallis EJ, Ramsay LE. Heart 2001 Mar;85(3):265-71 Texto integral em http://www.pubmedcentral.nih.gov/picrender.fcgi?artid=1729640&blobtype=pdf

6. For debate: Preventing atherosclerotic events with aspirin. John G F Cleland, BMJ 2002;324:103-105

7. Collaborative meta analysis of randomized trial of antiplatelet therapy among patients at high risk of occlusive vascular events. Antithrombotic Trialists’ Collaboration, BMJ 2002; 324:71-86.

8 . Aspirin-Resistant Thromboxane Biosynthesis and the Risk of Myocardial Infarction, Stroke, or Cardiovascular Death in Patients at High Risk for Cardiovascular Events. John Eikelboom et al, Circulation 2002, March 25; published online before print.

9. Aspirin resistance may increase death risk in some patients with heart disease, The Lancet; 359: 9312 – 30 March 2002.

10. Aspirin for the Primary Prevention of Cardiovascular Events: A Summary of the Evidence for the U. S. Preventive Services Task Force. Michael Hayden et al, Ann Intern Med 2002; 136:161-172.

11. Aspirin for the Prevention of Cardiovascular Events: Recommendation and Rationale. U. S. Preventive Services Task Force, Ann Intern Med 2002; 136:157-160.

12. ISIS-2 Collaborative Group. Randomised trial of intravenous streptokinase, oral aspirin, both, or neither among 17,187 cases of suspected acute myocardial infarction. Lancet 1988;ii:349-360

13. Coronary Syndromes following aspirin withdrawal, Emile Ferrari, Mustapha Benhamou, et al, presentation at the 69th annual international scientific assembly CHEST, October 29, 2003.

14. A randomized trial of low-dose aspirin in the primary prevention of cardiovascular disease in women, Paul M Ridker et al. NEJM March 7, 2005

15. Epidemiological modelling of routine use of low dose aspirin for the primary prevention of coronary heart disease and stroke in those aged > = 70, Nelson MR et al, BMJ 2005 May 20

 

Última revisão: 22 de maio de 2007

 

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