Instituto de Combate ao Enfarte do Miocárdio
Quadros Clínicos e Eletrocardiográficos na Coronariopatia
Quintiliano H. de Mesquita, Cardiologista
Na clinica, a coronariopatia crônica é considerada com três estágios característicos e diferentes e de progressão sucessiva registrados com muita freqüência como três condições clínicas bem distintas e consecutivas e outras vezes só a apreciação de um ou dois estágios, culminando no enfarte agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca ou graves e inesperadas arritmias com morte súbita.
Tem sido freqüente o registro da coronariopatia silenciosa ou assintomática no estágio da estabilidade até o desfecho sintomático da angina instável ou enfarte agudo. Em nossa experiência com portadores do 1º enfarte (1019 pacientes), observamos a coronariopatia assintomática em 62% (631 pts) até três meses antes do enfarte agudo, dos quais 28% (176 pts) passaram a ser portadores de angina instável e depois chegaram ao enfarte agudo; apenas 38% (388 pts) dos casos eram reconhecidamente portadores de angina do peito estável (primeiro estágio) que passaram diretamente ao enfarte agudo (terceiro estágio) sem sintomas que caracterizassem o segundo estágio de angina instável ou de repouso, como síndrome intermediária para o enfarte.
Enquanto isso ocorreu na admissão à Unidade Coronária, em nossa clínica privada os portadores de coronariopatia crônica (684 pts) mostravam incidências bem diversas: 83,8% eram sintomáticos e 16,2% assintomáticos; obviamente, os primeiros considerados eram motivados por sintomatologia alarmante, são predominantes; e, nos últimos, o achado patológico constituía um diagnóstico surpreendente, geralmente através do ECG já em repouso ou após a simples prova de esforço com trinta subidas no duplo degrau.
Em conseqüência dos dados fornecidos na admissão dos portadores do primeiro enfarte agudo do miocárdio, predominantemente assintomático (62%), podemos admitir que a coronariopatia crônica é assintomática ou silenciosa, insidiosa e traiçoeira e aparentemente surgindo de repente como uma crise aguda e grave, naqueles que não procuraram saber, preventivamente, do estado do seu coração através de uma avaliação cardiológica.
Na evolução natural da coronariopatia crônica, os estágios já descritos parecem sucessivos e progressivos, desde a estabilidade física e sintomática à instabilidade sintomática, física e fisiopatológica, própria da miocardiopatia isquêmica resultante e de maior importância prognóstica que o próprio estado anatômico das artérias coronárias afetadas pela aterosclerose, o qual, a nosso ver, tem atraído erroneamente a exclusiva atenção dos cardiologistas de nossa época, intervencionistas e voltados tão somente para os processos invasivos tendentes a normalizarem ou restabelecerem o fluxo sangüíneo nas artérias coronárias epicárdicas, de maior calibre, subestimando-se o socorro efetivo da auto-revascularização colateral coronária na manutenção do equilíbrio coronária-miocárdico e na prevenção das grandes complicações da coronariopatia crônica: enfarte, insuficiência cardíaca e morte súbita.
A Natureza faz automática e espontaneamente o socorro com grande propriedade e perfeição, garantindo freqüentemente a função ventricular e coincidente com a ausência de enfarte em casos de obstrução completa de um, dois ou três segmentos coronários importantes das coronárias epicárdicas e compatível com vida longa; enquanto muitos casos com numerosos e seqüenciais implantes de ponte de safena ou de artéria mamária enfartam, deterioram-se anatômica e funcionalmente, registrando-se volumosos aspectos sistólico e diastólico da silhueta cardíaca ventricular; assumindo, dentro da concepção atual dominante, a contradição verdadeira ao atribuído socorro imposto a rede coronária através da angioplastia transluminal e/ou ponte de safena, ocorrências paradoxais porque ao que nos parece o enfarte é de origem miogênica e o processo trombótico coronário é secundário ao enfarte e não obrigatório.
Admite-se, partindo do primeiro estágio de estabilidade coronário-miocárdica, mais longo, chega-se a observação do segundo estágio de instabilidade miocárdica e angina de repouso, tido como servindo de ligação entre a angina do esforço (primeiro estágio) e o enfarte agudo do miocárdio (terceiro estágio).
Entretanto, recentemente Ambrose e colegas tem procurado ampliar o segundo estágio com a sugestão de interposição do enfarte com quadro eletrocardiográfico mostrando ausência de onda Q como estado miocárdico precedente ao enfarte clássico definido pela presença de onda Q; tal sugestão parece-nos caracterizar a gradação sucessiva do processo de miocardiopatia isquêmica com degradação regional, anatômica e funcional irreversível, propiciadora do enfarte agudo, e, dependendo de maior extensão, desencadear a insuficiência cardíaca e morte súbita, ajustando-se assim a nossa concepção miogênica na gênese de tais condições cardíacas.
No primeiro estágio da coronariopatia crônica, o cardiologista procura os pacientes sintomáticos identificados facilmente através de cuidadosa anamnese no portador de angina do peito desencadeada por esforço ou emoção, traduzindo-se por dor com variações do caráter da sensação, tais como: queimação, constrição, aperto ou dispnéia fácil acompanhada de sensação indefinida, referida com sede nas regiões retrosternal, epigástrica ou precordial, com ou sem irradiação para cima, para o pescoço, maxilar, dorso ou membros superiores. A crise dolorosa provocada por esforço, mais facilmente durante o período pós-prandial ou caminhando contra o vento em baixas temperaturas, geralmente é aliviado com a cessação do esforço, dentro de poucos minutos; enquanto a crise provocada por emoção é mais duradoura e habitualmente aliviada prontamente por nitrato, por via sublingual, passando também espontaneamente mas em tempo mais longo (quatorze a quarenta minutos) porque decorre da ação de catecolaminas (adrenalina e noradrenalina) elaboradas pela emoção, cujos efeitos são imediatos, representados por aumento do trabalho do coração produzido pela hipertensão arterial, aceleração cardíaca e vasoconstricção coronária reacionais, atingindo um clímax para depois experimentar gradual redução de intensidade e efeitos.
Muito cedo os pacientes são conscientizados de que a dor que surge com esforço cessa logo após a interrupção do mesmo, enquanto a dor do peito que vem com emoção precisa do medicamento para o pronto alívio. Freqüentemente, a dor anginosa é acompanhada de palidez, extremidades frias e ligeira sudorese.
Os portadores de coronariopatia sintomática chegam à consulta temerosos com a fenomenologia clínica e atribuindo ao sintoma dor uma condição maléfica e perigosa, com risco de morte dependendo da duração do fenômeno; na verdade o aparecimento da dor deve ser admitido como uma advertência e um aviso de que o paciente é o responsável pelo mesmo e tem ultrapassado os seus parâmetros físicos ou sido submetido voluntariamente ou não a sobrecargas emocionais e seus efeitos estressantes com aumento do trabalho do coração. Assim, o portador deve interpretar a causa desencadeadora e administrar uma convivência pacífica e mais segura para com a sua condição clínica.
Na coronariopatia crônica sintomática, primeiro estágio de estabilidade caracterizada per causa e efeitos, a história da doença referida pelo paciente e perscrutada pelo medico é facilmente identificada e comprovada pela larga gama dos meios diagnósticos atuais: eletrocardiografia clássica ou com esforço, a moderna e dinâmica seja como a ergometria ou a do tipo Holter; a Doppler-ecocardiografia em repouso ou com esforço; a cineangiocoronariografia e a cintilografia miocárdica com esforço ou pós-Dipiridamol parenteral.
A coronariopatia crônica assintomática é preconcebidamente investigada em pacientes assintomáticos e aparentemente normais, principalmente a partir da quinta faixa etária e antes mesmo, quando os antecedentes familiares indicarem possível predisposição genética nesse domínio ou na presença de fatores predisponentes considerados de risco: hipertensão arterial, hiperlipidemia ou diabetes mellitus.
Quando da nossa iniciação em Cardiologia, início da década de 40, os casos de angina pectoris já tinham na eletrocardiografia o auxilio necessário para diagnóstico e começava-se a observar que em muitos casos clinicamente bem caracterizados o ECG de repouso apresentava-se normal. Várias manifestações dos pesquisadores de então procurava testar tais casos com a introdução de provas de esforço físico e até mesmo teste de anoxemia para apurar-se a sua repercussão sobre ECG quando então surgiu a prova de esforço de Master com a utilização do duplo degrau (1944), tendo sido muito bem recebida como o roteiro ideal para tal avaliação naqueles casos. Master preconizava uma tabela arbitrária baseada no sexo, peso e idade.
Recebemos aquela prova com entusiasmo para o início de nossa pesquisa clínica, mas fomos surpreendidos com a ressalva do autor quando sugeria que se praticasse a duplicação do número de subidas no duplo degrau, toda vez que a resultante eletrocardiográfica da sua prova não apresentasse curvas isquêmicas com o esforço e representasse contradição diante do diagnóstico clínico. Tais ocorrências foram notadas por nós e serviram-nos como motivo para realizarmos um estudo comparativo com a prova de Master, registrando-se o ECG de esforço após o aparecimento da dor do peito no paciente anginoso que conhecia bem como a fenomenologia se iniciava; assim, registrávamos o nivelamento dos pacientes pelo aparecimento da dor ou sintoma equivalente e ao mesmo tempo comparávamos essa nova prova com a tabela de Master. Em 1954, publicamos no trabalho "Eletrocardiograma de esforço na angina do peito" os nossos resultados com dezenove pacientes, dos quais apenas quatro estavam dentro da tabela preconizada por Master e os quinze restantes haviam exigido maior esforço, isto é, maior número de subidas no duplo degrau, entre 11% e 136%, com a média de 59% superior a tabela de Master. Todos os casos representavam a fenomenologia isquêmica em sua essência e o ECG era sempre concordante em seus aspectos do segmento RS-T e onda T, reconhecidos como padrão do ECG de esforço, suficiente para o diagnóstico eletrocardiográfico de insuficiência coronária relativa. A média alcançada de nossa prova superior a de Master em 59% equivalia a vinte e seis subidas no duplo degrau, então passamos a trinta subidas como nossa prova fixa que tem mostrado uma positividade efetiva de 90-93% em casos clínicos típicos de angina do esforço com ECG normal em repouso, índice muito significativo. Em nossa última casuística levantada em nossa clínica privada, o ECG de repouso apresentava-se anormal em 393 pts. sintomáticos e normal em 291 pts. que exigiam o ECG de esforço com índice de 90% de positividade para as trinta subidas preconizadas, o que nos dava tranqüilidade para mantermos a prova que é realizada com isquemia silenciosa nesse estágio. Em 1954, achávamos a prova de Master inoperante na grande maioria dos nossos casos, diante de nossas observações com a reprodução do quadro de angina do esforço e a equivalência eletrocardiográfica.
Anos depois (1961) tivemos a satisfação de registrar a adoção por parte de Master da sua nova prova com a duplicação dos valores de sua primeira tabela como melhor teste para diagnóstico eletrocardiográfico. Assim, Master ultrapassou também a nossa prova e realmente ficou em posição vantajosa e a sua prova, a nosso ver, tornou-se operante. Apesar disso mantivemo-nos em nosso nível com a prova de trinta subidas no duplo degrau por se mostrar satisfatória em seus índices de positividade já referidos.
Em passado recente voltamos a publicar resultados de nossa experiência com o teste das trinta subidas no duplo degrau, principalmente para indiretamente defender o novo teste de Master (ECG de esforço, trinta subidas no duplo degrau) para diagnóstico de insuficiência coronária relativa, ignorado e criticado por seleto grupo de estudiosos, de nosso meio, que compararam o primeiro teste de Master (1944) com a prova ergométrica e por fim declararam a mesma inoperância daquele teste, abandonado pelo próprio Master e substituído em 1961 por nova tabela, reconhecendo portanto a inoperância de seu teste, o que já havíamos feito em 1954.
Defendemos o 2º teste de Master porque o número médio de subidas é superior ao do nosso teste que consideramos útil e capaz de identificar os casos de coronariopatia crônica sintomática e nos assintomáticos com ECG normal em repouso.
O teste ergométrico e eletrocardiográfico não conta com a nossa simpatia por ser um método arriscado e com freqüentes complicações arrítmicas, desencadeando até enfarte e morte súbita, carecendo de cuidados especiais, como desfibrilador e outros cuidados urgentes, parecendo-nos fornecer subsídios mais de significado prognóstico que de simples indicação diagnóstica como o nosso método e o de Master; indicando pacientes em condições de suportar sobrecargas físicas estressantes e sobre a sua capacidade de sobrevida; mas, freqüentemente contrariando resultados das provas de esforço mais simples como a nossa e a de Master (1961) que possuem convincente indicação diagnóstica. Temos observado freqüentes contradições entre os resultados da ergometria e a nossa prova; do ponto do vista diagnóstico, em que temos evidências de insuficiência coronária relativa, enquanto a ergométrica praticada leva à conclusão oposta de ausência de isquemia; tendo sido registradas porém, no curso da observação, ocorrências de complicações maiores da patologia coronária crônica não identificada pela ergometria. Em suma, não temos sentido necessidade do seu emprego e estamos convencidos de que a nossa prova de esforço tem sido amplamente satisfatória e segura ao longo dos anos com o seu emprego diário.
Sobre a cineangiocoronariografia e ventriculografia sabemos que apreciável percentagem dos casos portadores de angina do peito estável apresenta uma rede arterial coronária angiograficamente normal não sendo absolutamente diagnóstica em freqüentes casos, o que ocorre até nos segundo e terceiro estágios da coronariopatia crônica, reconhecidos especialmente sob a rubrica de casos da Síndrome X ou de angina microvascular. No tocante ao método acreditamos que "Trata-se de exame subsidiário muito importante nas condições que se destinam à avaliação de indicação cirúrgica; no entanto, na atividade comum, não temos necessidade de sua informação rotineira porque qualquer panorama angiográfico coronário é tratado sempre da mesma maneira e com o objetivo de se preservar a função ventricular, garantindo-se a eliminação do confronto entre os segmentos ventriculares isquêmicos e os não isquêmicos através de um nivelamento por cima pelo cardiotônico. Não há absoluta necessidade de sua indicação para comprovação do diagnóstico clínico e eletrocardiográfico. O volume de pacientes coronariopatas é muito grande e o método invasivo é agressivo e não muito aceito pelos pacientes, desde que não haja uma justificativa maior.
Dentro dessa ordem de raciocínio não exigimos de nossos pacientes o sacrifício de submeterem-se a este método, porque na realidade o resultado não nos induzirá a qualquer medida terapêutica diversa daquela que esposamos".
Estudos sobre Doppler-ecocardiograma tem demonstrado grande utilidade na coronariopatia crônica com definida informação sobre o estado funcional do ventrículo esquerdo, significativo do grau de miocardiopatia isquêmica e especialmente sobre o inotropismo ventricular esquerdo tendo grande importância o teste de esforço nessa condição clínica.
Ainda temos como subsídios muito promissores os resultados clínicos da aplicação da cintilografia miocardica com xenônio, tecnécio e tálio, observada em repouso pós-esforço físico ou pós-Dipiridamol endovenoso. Todos esses métodos de diagnóstico vêm enriquecer a clínica na identificação da coronariopatia crônica sintomática ou assintomática. Entretanto, a nosso ver, isso não nos autoriza a utilizar toda a gama de exames subsidiários com o mesmo objetivo diagnóstico e em série, obrigatoriamente em cada caso, para a observação, seguimento clínico e terapêutica clínica como procedemos, sem cirurgia revascularizadora ou angioplastia transluminal coronária.
O segundo estágio evolutivo da coronariopatia crônica reconhecido como angina instável, ainda é referido como síndrome intermediária, do pré-enfarte ou de angina em crescendo. No passado apresentou grande sinonímia, nas últimas quatro décadas a grosso modo é identificada como a angina pectoris de repouso, diferindo assim da angina estável de esforço ou de sobrecarga induzida por emoção e desencadeada pela reação às descargas químicas auto-elaboradas pelo organismo.
Muitos casos de angina estável mostram evolutivamente o seu agravamento com o desempenho de angina espontânea e em repouso, precedendo freqüentemente a instalação do enfarte agudo do miocárdio, ou melhor, terminando nele. Durante o seu curso sintomático podem ocorrer manifestações isquêmicas silenciosas, surpreendidas pelo ECG durante monitoramento tipo Holter.
Em nossa experiência, de 631 pacientes assintomáticos durante o primeiro estágio e que foram acometidos por enfarte agudo do miocárdio, 28% (176 pts) apresentaram angina instável nos três meses anteriores ao enfarte agudo. Os pacientes portadores de angina instável começam freqüentemente sem antecedentes de angina estável e são caracterizados por crises prolongadas de angina do peito, não provocadas por esforço ou emoção, portanto coincidentes com repouso ou durante o sono e praticamente não influenciadas por nitratos de ação rápida por via sublingual (dinitrato ou nitroglicerina), acompanhadas por diaforese fria de todo corpo, extremidades frias, palidez, fraqueza geral e dispnéia; aliviada espontaneamente após quarenta e cinco minutos ou mais ou através do emprego de analgésico e até entorpecente.
À primeira vista dá a impressão de processo de instalação de enfarte agudo, mas a reversibilidade do quadro caracteriza bem a angina instável e parece-nos oferecer a oportunidade de ação para se evitar o enfarte com a terapêutica específica que só descobrimos após 31 anos de frustrantes insucessos com todos os tipos de tratamento preconizados pela ortodoxia, quando começamos a comprovar a teoria miogênica em seus novos conceitos terapêuticos para a angina instável, baseados na fisiopatologia caracterizada pela insuficiência miocárdica regional primária e isquemia miocárdica recíproca. Tais crises que aparecem em pacientes anteriormente assintomáticos, representam fato novo de transformação de caso assintomático evoluído e que, ao estudo cineangiocoronariográfico, se mostram muito semelhantes aos casos de enfarte recente.
Pensa-se em tais casos que a coronariopatia crônica em franca evolução e assintomática, mas com isquemia relativa ao esforço ou com curtos surtos de isquemia surpreendidos pelo ECG no teste de esforço ou pelo monitoramento tipo Holter de repente passa a apresentar-se com características manifestações sintomáticas, repetitivas e espontâneas e freqüentemente culminando com a instalação do enfarte agudo do miocárdio: a angina recorrente espontânea, resistente ao tratamento medicamentoso em voga há muito tempo e não influenciada pelos nitratos de uso sublingual, capaz de atemorizar o paciente anginoso crônico bem identificado com a sua condição clínica e o medico assistente; para nós, tal condição faz parte de nosso passado, porque tem sido debelada fácil e prontamente no presente, a partir de 1972.
No antigo portador de angina do peito estável a transformação do processo em angina instável vem alterar sobremaneira o seu equilíbrio neuropsíquico, porque a fenomenologia sintomática passa a caracterizar-se, além da redução de sua tolerância ao esforço, pelo aparecimento da dor no peito em condições de repouso ou durante o sono e pela ineficácia do nitrato sublingual, exigência de analgésico e até de entorpecente para alcançar o alívio da crise episódica, acompanhada por diaforese fria e extensa, queda da pressão arterial, palidez extrema, fraqueza geral e falta de ar.
Esse quadro atemoriza o paciente, familiares e o médico assistente que passa a admitir a possibilidade de próxima instalação do enfarte agudo; no entanto, a duração de trinta a noventa minutos e sua reversibilidade espontânea vem caracterizar o processo instável, diferenciando-o assim do enfarte agudo.
Tais crises costumam ser recorrentes e muitas vezes assumem aspecto em crescendo, repetitivas e com curtos intervalos.
No passado, durante mais de três décadas, assistimos freqüentes casos dessa natureza durante períodos de até nove meses consecutivos e incapacidade física que nos levava a considerá-los como portadores de estado anginoso permanente e em poucos casos como de invalidez física e ocupacional; casos esses resistentes a terapêutica medicamentosa até 1972, pois a partir daí todos os casos de instabilidade sintomática passaram a fácil e prontamente revertidos à estabilidade, através do nosso novo enfoque terapêutico e fisiopatológico.
Todavia, tais casos clinicamente ainda hoje continuam sendo referidos na literatura e submetidos, em caráter de urgência, ao tratamento cirúrgico revascularizante muito em voga, acrescido de larga gama de medicamentos, mas com índices de enfarte e mortalidade imediata de 6 a 9% dos casos assim tratados.
Vejamos agora os aspectos eletrocardiográficos registrados na angina instável: durante o processo doloroso a isquemia se revela eletrocardiograficamente como se fosse a instalação do enfarte agudo e até aparecimento de onda Q que é tida em gênero como curva de lesão necrótica, mas se mostrando apenas transitória, tem sido interpretada por nós como decorrente de grande alteração isquêmica transmural, voltando ao período de acalmia com discretas alterações do segmento RS-T e de onda T dos tipos subendocárdico ou subepicárdico e até mesmo normalização do ECG fora das crises anginosas e exigindo ECG de esforço para demonstração da isquemia também relativa. Nesse particular, a prova de esforço tem mostrado em alguns casos o supradesnivelamento do segmento RS-T + onda T, como curva de injúria miocárdica semelhante ao que se vê na ligadura experimental de ramo de artéria coronária e o seu desaparecimento com a reperfusão miocárdica. Nos casos de angina estável a regra é o registro do infradesnivelamento do segmento RS-T e onda T (-+). Deve-se atentar para o fato de que, nessas condições frente à angina instável, a ergometria tem levado muitos pacientes a morte súbita após o desencadeamento de graves arritmias ou ao enfarte agudo, por agravamento incontrolável das más condições funcionais na sede da miocardiopatia isquêmica regional, geralmente observada nos segundo e terceiro estágios da coronariopatia crônica.
O terceiro estágio da coronariopatia crônica é o mais temido, universalmente, representando o enfarte agudo do miocárdio e apresentado como o grande matador, o bicho assombrado ou a assombração que tem servido como tal para conduzir ao rápido convencimento dos mais fracos e acovardados em potencial quando inseridos no rol dos coronariopatas pelos numerosos propugnadores da via cirúrgica como a opção terapêutica heróica, ouvem sistematicamente sentenças pouco honestas do tipo "para se evitar o enfarte só a operação de ponte de safena!".
Em torno do prognóstico do enfarte agudo há muita fantasia e mentiras e freqüentemente muitas das mortes por ocorrerem subitamente são debitadas a ele, quando na realidade nas autópsias são evidenciadas rupturas vasculares intra ou extracranianas; arritmias graves por miocardiopatias outras ou insuficiência cardíaca aguda.
Na época em que se tratava o enfartado agudo em seu próprio domicílio, com repouso absoluto no leito durante cinqüenta dias, a sobrevida imediata foi registrada por nós como 92%, em pacientes acompanhados desde as primeiras horas da instalação da crise dolorosa, em um reduzido grupo (296 pts) de pacientes diferenciados. Mais tarde, em grupo muito superior (1290 pts) e de classes sociais bem diversas, em Unidade Coronária do nosso antigo Serviço hospitalar, registramos sobrevida imediata de 88%; tais índices não autorizam a ninguém proclamar que a ocorrência do enfarte agudo seja calamitosa, prática comum na técnica de convencimento para os pacientes se submeterem a cirurgia de ponte de safena e de mamária, uma vez que a mortalidade inferior a 15%, ao contrário deve servir de esperança para quem é assim acometido, deve apelar para a sorte; para convencer-se alguém a operar-se do coração não é absolutamente lícito colocar-se a faca nos peitos e reduzi-lo ao nível do tapete, para depois indicar-lhe o caminho da cirurgia corno única opção, trilha comum dos acovardados e desinformados, diante do enfarte pintado como obrigatório na coronariopatia crônica e como pena de morte.
Tomamos conhecimento de um caso ocorrido há algum tempo com paciente anginoso que temia muito a possibilidade de ser acometido por um enfarte e que fora levado à cirurgia de ponte de safena como o meio de evitar o enfarte. Poucos meses depois da operação enfartou e não suportando o acontecido, suicidou-se, mas o enfarte não o matou!
Curiosamente, no Brasil, os que vão ser submetidos àquela cirurgia, não são previamente informados de que no período perioperatório (trinta dias a partir do ato cirúrgico) pode ocorrer o enfarte agudo do miocárdio (0%-58%, Md de 18%). Temos atendido pacientes operados há um ano ou mais que teriam tido enfarte perioperatório e ignoravam completamente o ocorrido.
A instalação do terceiro estágio da coronariopatia crônica pode ocorrer no curso do segundo estágio, quando de repente uma crise dolorosa não apresenta mais aquele retorno espontâneo e torna-se permanente por várias horas consecutivas, pela perpetuação da isquemia miocárdica, agora absoluta e evolvente para a necrose. A transformação das crises do segundo para o terceiro estágio só mostra uma diferença, a irreversibilidade da dor, a permanência do quadro clínico de diaforese fria, profusa e generalizada, palidez, extremidades frias, queda da pressão arterial às vezes precedida por ascensão inicial, estado de grande angústia pela presença da dor e, até algumas vezes estado de alienação mental durante o período de dor cruciante, localizada na região retrosternal com ou sem irradiação para o pescoço, mandíbula, costas e membro superior esquerdo ou bilateral. A duração é de horas consecutivas e ao final quando cessada, desaparece por completo e em muitos casos cura a angina passada quando o paciente volta a atividade comum. O enfarte agudo apresenta um curto período febril ao lado de pericardite seca durante quarenta e oito a setenta e duas horas, coincidindo com alterações enzimáticas próprias da primeira semana.
Quando a pericardite seca ou com derrame surge tardiamente e mostra-se recidivante, podendo ser acompanhada por manifestações de pneumonite ou pleurite com ou sem derrame hemorrágico, mas sempre de natureza estéril, constituem-se como indício de manifestações imunopatológicas descobertas por Dressler em 1956 e muito bem ilustradas por publicações daquela época, quando também publicamos uma série de três trabalhos com casos muito interessantes e constatamos o risco de morte por ignorância do fato, mesmo após a publicação de Dressler, em um paciente (trinta e dois anos) que nos chegou transferido de outro nosocômio, trinta dias após a instalação do enfarte e com um laudo cheio de tenebrosas hipóteses diagnósticas, o qual foi salvo pelo corticosteróide.
A síndrome de Dressler foi uma descoberta de cardiologista clínico que se antecipou ao tempo e foi genial, porque até aquele momento o tecido miocárdico necrótico liberado no sangue após o enfarte não era ainda reconhecido como antigênico. Após o seu trabalho original, dois autores de Israel (Davis e Gery, 1961) reconheceram o miocárdio como capaz de ação antigênica.
Como complicações do enfarte agudo do miocárdio podem surgir arritmias cardíacas de vários graus e às vezes graves e fatais, seguidas por paradas cardíacas e morte súbita; a insuficiência cardíaca surge quase sempre quando a extensão do enfarte atinge cerca de 30% da área ventricular esquerda e o choque cardiogênico quando o enfarte estende-se numa área superior a 40% do mesmo ventrículo ou então, mesmo com extensão menor, quando o enfarte tem sua sede predominante ou isolada no ventrículo direito, motivando o choque cardiogênico por insuficiência ventricular direita e conseqüente baixo débito do ventrículo esquerdo, exigindo tratamento diverso daquele decorrente do comprometimento do ventrículo esquerdo, isolado e extenso. Dessa maneira, o que se vê é uma diferença vital no diagnóstico do choque cardiogênico, influenciando decisivamente no sentido prognóstico os casos de enfartes do ventrículo direito ou do ventrículo esquerdo; neste último, a mortalidade é muito grande (acima de 80%), enquanto no primeiro o processo tem sido revertido com a terapêutica específica com a expansão líquida bem conduzida, em trabalhos primorosos como o original de Cohn e col. e de muitos outros, despertados pelos novos conceitos de Cohn e col..
A ruptura da parede livre ventricular é uma complicação fatal do enfarte com morte fulminante, enquanto a ruptura do septo interventricular tem sido muitas vezes corrigida cirurgicamente.
A eletrocardiografia do enfarte experimental de Wilson e col. aplicada a Clínica marcou época e foi fundamental a partir da década de quarenta para o diagnóstico do enfarte agudo do ventrículo esquerdo, praticamente mapeado em todas as suas superfícies - anterior, posterior, inferior,lateral, subepicárdica e subendocárdica - com padrões específicos e indubitáveis. Além disso, a eletrocardiografia indicava com grande probabilidade a presença de aneurisma ventricular pós-enfarte. Já na década de 50 tínhamos cinco casos com a indicação eletrocardiográfica e confirmação radioscópica e telerradiográfica pela deformação da silhueta ventricular esquerda e em 1954 demos oportunidade a Charles P. Bailey (Filadélfia) de iniciar a cirurgia desse tipo de aneurisma no último dos nossos casos: o primeiro caso de aneurismectomia ventricular esquerdo pós-enfarte foi operado no Hahnemann Hospital de Filadélfia. A partir daí os cirurgiões de coração tem operado os verdadeiros e falsos aneurismas na coronariopatia crônica com ou sem enfarte prévio: operação plástica para a boa silhueta e função ventricular.
Em 1958, observando um caso de enfarte agudo do miocárdio com aspectos clínicos sui generis e eletrocardiograficamente diverso de quantos tínhamos visto até então, chegamos à hipótese diagnóstica de enfarte isolado do ventrículo direito através do ECG, contrariando a teoria cavitária de Wilson e col.
Em revisão da literatura encontramos trabalhos experimentais de Wilson e col. (1932-38) e de Bakos (1950) identificando o enfarte do ventrículo direito com as mesmas características eletrocardiográficas do enfarte do ventrículo esquerdo nas derivações, epicárdicas ou diretas e precordiais ou indiretas (Deflexão QS ou QR). Logo depois, em nosso caso, obtivemos.o ECG epicárdico do ventriculo direito, confirmando-se assim a presença do enfarte do ventrículo direito pela reprodução dos padrões achados nos enfartes experimentais de parede livre do ventrículo direito por Wilson e col. e Bakos.
O atraso no diagnóstico eletrocardiográfico do enfarte do ventrículo direito é de quase cinqüenta anos e foi bloqueado naturalmente pela teoria cavitária wilsoniana, a despeito dos verdadeiros padrões constatados clínica e experimentalmente. Após o trabalho de Cohn e col. (1974), chegamos a evidência em Cardiologia de que se necessita saber rapidamente, no enfarte agudo do miocárdio com síndrome de baixo débito, sobre a presença do enfarte comprometendo o ventrículo direito e o grau de sua predominância, para a instituição da terapêutica diversa daquela destinada ao comprometimento isolado do ventrículo esquerdo; qual seja administrar o aumento da expansão líquida necessária e salvadora no primeiro e contra-indicada no segundo.
Tem sido registrada a busca para a identificação do enfarte do ventrículo direito por vários métodos de diagnóstico: hemodinâmico, ecocardiográfico e cintilográfico. Por fim, chegaram ao redescobrimento do enfarte do ventrículo direito pela eletrocardiografia clínica e experimental.
Em 1985, consoante as novas perspectivas cardiológicas para o enfarte do ventrículo direito como participante no quadro clínico do enfarte agudo (42%; 23-62%), atingimos o momento crítico para enfeixar nossas investigações eletrocardiográficas sobre o enfarte do ventrículo direito, publicamos trabalho sobre "Nova e simplificada classificação eletrocardiográfica do enfarte agudo do miocárdio", na qual reputamos a necessidade de admitirmos o reconhecimento de apenas três tipos de enfarte: 1º - enfarte do ventrículo esquerdo isolado (737 pts, 64,7%); 2º - enfarte do ventrículo direito isolado ou associado a enfarte do ventrículo esquerdo inaparente (91 pts, 8%), e 3º - associação de enfartes de ventrículos direito e esquerdo (311 pts, 27,3%), fundamentada em uma casuística de 1139 pacientes com a inclusão rotineira da Derivação Precordial V4R como ponto de pesquisa específica do ventrículo direito, sendo que em 86 pts. foram tomados também os pontos V6R e V5R.
Nessa classificação o diagnóstico eletrocardiográfico tem por si só específicas implicações fisiopatológicas, terapêuticas e prognosticas.
Os demais métodos diagnósticos já referidos podem reconhecer a sede do enfarte e ajudar a restabelecer a primazia da eletrocardiografia como método diagnóstico seguro e precoce para todos os tipos de enfarte de nossa classificação.
Nota: Este artigo foi extraído de capítulo com o mesmo título do livro "Como escapar da ponte de safena e do enfarte do miocárdio só com remédio", Mesquita, QHde: Editora Ícone, 1991 cujo resumo pode ser visto em http://www.infarctcombat.org/livros/icem.html
Veja também
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